Noção de amanhã

Para Antônio Ermírio, o papel do empresário num país desigual como o nosso é o de respeitar os pobres e não afrontar a pobreza com o consumo conspícuo

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Por Jorge Caldeira
Atualização:
1928-2014. Vestia-se com simplicidade e gostava apenas dos problemas difíceis Foto: BETO BARATA/ESTADÃO

A noite da última terça-feira foi curiosa. Graças ao zap, processei dois sentimentos contraditórios: a ausência de Antônio Ermírio de Moraes para o Brasil e as angústias com o futuro do país. Por uma estranha coincidência, o debate entre os presidenciáveis foi simultâneo à homenagem prestada pela TV Cultura, que reproduziu uma entrevista dada pelo empresário em 1991.

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Assim se construiu uma simultaneidade entre eventos separados por 23 anos – mas ambos ligados por uma única perspectiva: o futuro do Brasil. Essa é uma ligação em si mesmo curiosa. Para os presidenciáveis, tratava-se de um momento de assumir compromissos racionais, apontar direções nacionais; para Antônio Ermírio, do exercício de uma compulsão, de uma paixão desenfreada, de algo que ele mal conseguia conter.

Isso faz diferença. Candidatos à direção da nação são obrigados a apresentar utopias como programas realizáveis. Enquanto isso, simples cidadãos, ainda que no papel de empresários bem-sucedidos, falam das realidades que conseguem implantar, mesmo que sempre imperfeitas, mas sonhando com o amanhã.

Em tese, tal construção levaria a supor uma grande vantagem para os candidatos, obrigados com o futuro e desobrigados com o passado. Mas, na prática, o exercício de zapear entre um canal e outro, processando sensações diferentes, foi produzindo em mim contrastes difíceis.

O primeiro deles se deu quando vi Antônio Ermírio falando (daqui em diante as súmulas são minhas, paráfrases não literais) da necessidade de que o Brasil procurasse alianças no mundo global. O argumento era de que a Europa se unira, os Estados Unidos estavam se unindo ao México e Canadá, a Ásia estava buscando toda espécie de acordo regional – e o Brasil poderia ficar isolado ou marginal nesse processo global.

Apenas para lembrar aos mais jovens, no ano de 1991 Antônio Ermírio de Moraes era considerado pela opinião pública como um nacionalista meio extremado, um exemplo retrógrado do comportamento isolacionista dos tempos do milagre brasileiro, um ser que desafiaria a modernidade e seria tragado no mundo global.

E, assim relembrando os mais jovens, digo que não vi o menor sinal de preocupação do lugar do Brasil hoje isolado no mundo ao longo do debate entre os candidatos a presidente. Tudo entre eles se passava como se a globalização não fosse um problema, como se o Brasil tivesse um lugar ao sol neste mundo – o máximo de referências internacionais no debate teve a ver com Cuba, como se ela fosse o centro dos problemas mundiais.

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Comecei a sentir falta de Antônio Ermírio. Mas fiquei aliviado quando o revi fazendo uma afirmação definitiva, tão a seu gosto: “Enquanto o Brasil não levar a sério a educação, não vai ter nenhum futuro”.

Num certo sentido, essa afirmação me apaziguou, por razões muito próximas. Ele foi colega de ginásio de meu pai, Jorge Alberto Fonseca Caldeira, e ao que parece os dois disputavam os primeiros lugares na turma. Quando isso acontecia, o Brasil simplesmente não tinha nenhuma universidade e metade da população era analfabeta.

Para simplificar: quase tudo aquilo que os candidatos apresentaram sobre o assunto educação foi construído no período de vida da geração de meu pai e seu colega de classe. Não é pouco. Entre 19991 e 2002 foi fechada a fábrica de excluídos das letras (a taxa de crianças fora da escola caiu de 16% para 2% nos governos Fernando Henrique) e a universidade se tornou algo palatável para as massas (a taxa de estudantes universitários como proporção da população em idade própria dobrou nas gestões do PT). Nesse sentido, a preocupação do empresário se tornara preocupação efetivamente nacional, embora ainda não resolvida totalmente.

Mas a angústia voltou logo. Esses eram os problemas simples – e Antônio Ermírio só gostava dos problemas difíceis. Fiquei então imaginando o que ele falaria sobre a combinação entre a realidade universal das mudanças do clima e a possibilidade real de que uma das catástrofes previstas para essa situação se realize exatamente sobre a maior cidade do País, com a falta de água que assombra São Paulo.

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Trata-se de uma hipótese plausível, de uma possibilidade que realmente deveria ser levada a sério por qualquer pessoa que considere cenários futuros – mas só foi vocalizada pelos candidatos marginais.

E isso me levou a uma lembrança: em algum momento no início deste século entrevistei Antônio Ermírio para uma revista publicada por uma ONG ecológica. Fiz isso meio desconfiado, porque pensava nele como um engenheiro metalúrgico de formação – e escudava essa impressão de ser infenso ao assunto ecologia em anos de convívio nos quais ele jamais tocara em nada que me levasse a desconfiar de alguma preocupação com sustentabilidade.

A entrevista está publicada na revista dessa ONG. Ela revela que o entrevistado conhecia já em detalhes numéricos todas as minúcias do ciclo do carbono. Salvo engano, ela revelava inclusive os limites quantitativos da expansão de cada uma das unidades produtivas da Votorantim sob sua supervisão – e trazia detalhes de como reciclar a produção para uma realidade de baixo consumo de carbono e das trocas totais equilibradas com a natureza.

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Esse era o empresário que reaparecia em minha memória: alguém que enfrenta os problemas do amanhã. E reaparecia relembrando que o papel do empresário num país desigual era o de respeitar os pobres e não afrontar a pobreza com o consumo conspícuo; de rejeitar os favores do governo (se bem me lembro, disse algo como “aceitar financiamentos do BNDES é aceitar uma morte luxuosa”); ser um cidadão como os outros – e suportar a obrigação extra de ser responsável pelo futuro perante a sociedade como um todo, pois o governo do País é incapaz disso.

E senti a falta dele entre aqueles candidatos que detêm a chave do futuro em suas mãos.

*

JORGE CALDEIRA É JORNALISTA E ESCRITOR, AUTOR DE MAUÁ, EMPRESÁRIO DO IMPÉRIO (COMPANHIA DAS LETRAS) E HISTÓRIA DO BRASIL COM EMPREENDEDORES (EDITORA MAMELUCO), ENTRE OUTROS TÍTULOS

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