Notas sobre um mistério

A doutora foi, e ainda é, alvo de uma investigação que destampou medos e hipocrisias no miolo do País

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Por Monica Manir
Atualização:

.A MORTE SÚBITA DE... | Neide Mota MachadoEx-médica acusada de crime de aborto em Campo Grande (MS)

 

 

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Neide Mota Machado não nasceu para passar em branco pela sociedade. Ostentava longa e bem hidratada cabeleira negra, que contrastava com os olhos azul-esverdeados. Suas roupas exibiam etiquetas de grife, os acessórios idem. Gostava de joias douradas e não dispensava rímel e batom. Uma das fundadoras da Igrejinha e da Tradição do Pantanal, escolas de samba de Campo Grande, apreciava um ziriguidum, mas preferia arrastados bailes de chamamé e inaugurações de obras. Era, somada à aparência notória, senhora de última palavra, de mente determinada, pessoa difícil de convencer do contrário. No último domingo, contrariando a expectativa dos mais queridos, que lhe estimavam anos de vida além dos 55, foi encontrada agonizando dentro do seu CrossFox, numa estrada erma na zona rural da capital sul-mato-grossense. Morreu no banco do motorista e com o carro ligado, sob o olhar passivo de três testemunhas, que não sabiam o que fazer com aquela quase anônima.

Há cerca de dois anos, a anestesiologista Neide Mota Machado turbara a ordem pública quando uma reportagem da TV Morena, afiliada da TV Globo em Campo Grande, insinuou que sua clínica de planejamento familiar realizava abortos. Usando uma microcâmera, a produtora Ana Raquel Copetti se fez passar por uma gestante que, acompanhada de suposto namorado, repórter da emissora-mãe, desejava interromper a gravidez. A psicóloga responsável pela triagem estabeleceu com o casal um diálogo que deu pistas da prática de abortos no estabelecimento. Neide foi entrevistada mais à noite, já com a câmera à vista, e não negou a reportagem. Disse que o trabalho que realizava havia 20 anos era uma forma de evitar que mulheres que não queriam mais a gravidez se arriscassem ao fazer o procedimento numa clínica que não oferecesse a assistência médica adequada. Diante da afirmação da ilegalidade do procedimento, enfatizou: "Não é questão de deixar na ilegalidade que vai mudar a situação. O que tem de fazer é legislar a favor".

Não tardou para a polícia proceder a busca e apreensão de provas no seu estabelecimento, encimado num sobrado de esquina no bairro do Amambaí, a três quarteirões da rodoviária. Além de instrumentos cirúrgicos e caixas de Cytotec, os agentes colheram 9.896 fichas de mulheres que teriam passado pelo local. Na maioria delas constavam nome completo, endereço, telefone e idade da paciente, primeiro nome do acompanhante, grau de parentesco do próprio com a paciente e seu telefone eventual. Também apareciam, entre outras, anotações sobre realização de ultrassom, a palavra "apta" diante da avaliação psicológica e valores que giravam em torno de R$ 1.000 a R$ 3 mil, a maioria parcelados.

Decretada sua prisão, Neide Mota Machado saiu de cena por 78 dias. Enquanto foragida, teria enviado torpedos cotidianos à produtora Ana Raquel, que registrou boletim de ocorrência dizendo-se ameaçada: "Ela escrevia que eu mandava na polícia e que eu ia morrer", afirma. "O que fiz foi cumprir minha parte, ou seja, denunciar uma clínica que, sob a bandeira de planejamento familiar, realizava abortos no meio da cidade, e de portas abertas para quem quisesse entrar." Era a primeira vez que a equipe usava a microcâmera e a pauta teria surgido, diz Ana Raquel, após outra matéria investigativa furar.

O fechamento da clínica estremeceu Campo Grande, especialmente depois que se permitiu a consulta das fichas a quem quisesse consultá-las. O juiz substituto da 2ª. Vara do Tribunal do Júri, Júlio Roberto Siqueira, entendeu ser normal a liberação para vistas ao processo, "sem que isso significasse expor as pacientes". Diante da romaria de curiosos, a maioria homens, e da suspeita de sumiço de fichas, voltou atrás. Apenas os advogados que representavam as denunciadas pelo Ministério Público Estadual passaram a ter acesso aos documentos.

Aluízio Pereira dos Santos, o juiz titular, continua a entender que a liberação das fichas para vistas não fere a ética. Apesar de parecer do Conselho Federal de Medicina de 1990, que reafirma o princípio de sigilo profissional sobre prontuários médicos, ele não enxerga a coisa assim: "Seja prontuário, seja ficha, não se justifica o segredo de Justiça porque não é invasão da intimidade. O que há de íntimo aqui?", indaga, folheando uma das fichas com o cuidado de cobrir o nome da paciente das vistas da repórter.

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A ideia inicial da promotoria era investigar as mais de 9 mil mulheres, e quanto antes, já que a prescrição do delito ocorre em oito anos. Mas o processo seria um colosso além das capacidades do Judiciário, donde se optou por se resumirem a cerca de 1.200 casos, aqueles com "fortes indícios de aborto provocado", quais sejam, a presença de valores além de uma consulta padrão, declaração de gravidez positiva e a expressão "apta" na avaliação psicológica. Em juízo, Neide insistia que fazia abortos de fetos retidos. "Por que a paciente se diria apta a tirar um feto que já morreu?", pergunta o juiz Aluízio.

Também em depoimento, Neide Mota Machado insistia ter feito abortos legais, consequência de estupro ou de risco para a vida materna. Diante da negativa de médicos da cidade de assinar esse tipo de prontuário, casos de estupro teriam sido encaminhados a ela pelo próprio Estado, que não confirma a informação, mas também não nega. Certo é que o SUS de Mato Grosso do Sul não oferece esse tipo de atendimento. Aos que ventilam que o Hospital Regional contempla casos do gênero, mas prefere a surdina para não atrair protestos antiaborto, o diretor do hospital nega veementemente a hipótese. Ronaldo Queiroz afirma que a instituição está em fase final de credenciamento no programa de combate à violência contra a mulher, programa que envolveria o aborto legal.

Em março deste ano, o deputado estadual Paulo Duarte, do PT, solicitou a regulamentação desse tipo de aborto no Estado. Sua justificativa: sem a regulamentação, muitas vítimas de violência sexual continuam procurando clínicas particulares ou saindo do Estado para garantir seus direitos. "Com a economia focada na agropecuária, Mato Grosso do Sul ainda é muito conservador", analisa. "O fato", continua ele, "é que a clínica foi conveniente para muita gente por muito tempo."

Luiz Bassuma, este, deputado federal pelo PV, suspenso por um ano do PT por ser contrário ao aborto, entende que o caso de Campo Grande, como outros estouros de clínicas clandestinas, serve do ponto de vista pedagógico. Mal o escândalo explodiu na capital ele esteve a postos como líder da Frente Parlamentar em Defesa da Vida. Para Bassuma, o aborto funciona como as drogas: "É incompatível tolerar o consumo delas, mas não se pode agir como se nada existisse". Daí sua aprovação à penalização de quem pratica o procedimento, que vai de 1 a 3 anos de prisão, e a prestação de serviços sociais por parte de quem se submete à interrupção da gravidez.

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Por enquanto, as pacientes com os fortes indícios apontados pelo juiz Aluízio comparecem ao fórum uma vez por mês para comprovar endereço e atividade lícita. Aquelas que desejam viajar por mais de 15 dias devem notificar sua ausência. Se desejarem participar de seleção ou concurso, sabem que, por dois anos, sua ficha de antecedentes criminais estará "suja". Para os homens que constam e que não constam dos protocolos, ficou isso por isso mesmo. "A gente pergunta se a mulher tem interesse em responsabilizar o companheiro pelo que foi feito, mas aí ela fala para não mexer mais no assunto. Você vai desencavar uma história dessa para complicar ainda mais a vida dela?", indaga o juiz Aluízio.

Neide Mota Machado foi presa no dia 11 de julho de 2007 na Chácara Terenos, a 25 quilômetros de Campo Grande. Acusada pelo MP de prática de aborto, apologia ao crime e formação de quadrilha, ficou 31 dias no Presídio Feminino Irmã Irma Zorzi, de onde saiu para responder ao processo em liberdade. No dia 23 de julho de 2009, teve seu diploma cassado pelo CFM. Ela se formara em Uberaba, onde nasceu, e durante mais de 20 anos trabalhou no SUS como anestesiologista.

A clínica de 600 metros quadrados foi erguida por ela na Rua Dom Aquino. Neide morava no andar de cima. Depois do escândalo, ela se mudou para sua chácara, no Jardim Veraneio, onde arquitetou o que chamava de "buraco" - quarto, sala e banheiro abaixo da sacada, com luz natural. Viúva de marido assassinado, vivia do aluguel na Dom Aquino, no andar de cima na chácara e em imóveis que recebera de herança em Minas. Continuava festeira, porém uma festeira mais isolada. "Houve uma revoada dos amigos", lembra Ruy Novaes, seu advogado.No parecer dele, o processo que a levaria a júri popular em fevereiro estava fadado à nulidade porque Neide e três funcionárias da clínica haviam sido arroladas em processos separados das mulheres passivas. Ademais, as testemunhas não confirmaram o aborto em 25 pessoas, que seria a primeira leva de acusação.

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Avessa a entrevistas, sua cliente parecia serena dentro dos limites da sua hiperatividade. Não afrontava mais o poder público nem denunciava aos pontos cardeais a hipocrisia das instituições. No domingo, saiu por volta das 10h20 de casa avisando Beth, sua empregada, que compraria leite numa chácara vizinha, pensando nos doces para as festas de fim de ano. A 50 metros da porteira, encostou o carro. Um casal a abordou e ela disse que estava bem, mas parecia grogue. Na mão direita trazia uma seringa de 10 ml e entre suas pernas havia outra, esta sem agulha. Estava por ali um frasco de cloridrato de lidocaína, já usado, e uma carta escrita a lápis entre o banco dela e o do passageiro.

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Quando desfaleceu, a Polícia Rodoviária foi chamada por alguém a pé. Neide Mota Machado morreu às 15h25. O que se divulgou da carta foram trechos que, segundo a Polícia Civil, remetem à morte, como "que não houvesse pânico, nem trauma, nem dor...", mas que, segundo seu sobrinho, era trecho de um livro que ela e Beth queriam escrever juntas. Outro indício da suposta tentativa de suicídio seria o registro em cartório, dois dias antes do falecimento, de seu desejo de ser cremada. Para Carlos Eduardo Moreira, amigo de longa data e inquilino do "endereço maldito", ela apenas reiterou, diante da renovação do plano de saúde, o desejo de não depender da mãe de 83 anos decidir pelo seu enterro em outros moldes que não a cremação. Falou-se também do vestido azul-celeste comprado dias antes, sinal incontestável de cor fúnebre. No caixão, vestia um terno preto e sapatos de grife. Em sua casa encontraram ainda o livro Deus não É Grande, de Christopher Hitchens, assumido como leitura de cabeceira no momento. Ele foi anexado aos autos.

A psicóloga Margareth Arilha, diretora da Comissão de Cidadania e Reprodução, que conheceu Neide Mota Machado em 2008, prefere falar do aniquilamento de corpo e alma que sofrem aqueles que mergulham numa questão tão controversa como o aborto. Para ela, o caso de Campo Grande teve mais notoriedade que a sociedade espera, mas menos notoriedade que deveria ter tido. Neide Mota Machado não pôde ser cremada porque o inquérito policial deve demorar pelo menos um mês para ser concluído. Sobre a grama do Memorial Park jazia uma coroa de lírios e rosas vermelhas com a faixa "Saudades Tuas Gueomar", fadada a breve desaparecimento. Por toda a alameda dominam as flores artificiais. O mosquito da dengue é praga inconteste na cidade.

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