Nova tradução da 'Ilíada' privilegia a poeticidade de Homero

No mundo mítico da 'Ilíada', os deuses participam diretamente dos acontecimentos, que se dão sob os desígnios supremos de Zeus; seu filho Apolo deflagrara a peste que arruína os homens

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Por Marcelo Tápia
Atualização:

Uma peste dizima os gregos (ou aqueus, ou dânaos) quando se abre a Ilíada de Homero, que evoca a Musa para cantar a ira do herói Aquiles, durante o décimo ano da guerra de Troia. Peste, ira e guerra, portanto – bem como o conflito pela polarização entre o comandante do exército e o seu melhor guerreiro – compõem o cenário inicial do mais antigo poema da literatura ocidental, que, no dizer de Salvatore D'Onofrio, "mais do que a expressão de um ideal de vida, é a descrição de uma gama variegada de tipos, cada qual representando um aspecto ou uma aspiração da vida humana." Assim se inicia a obra, na nova tradução de Trajano Vieira: “A fúria, deusa, canta, do Pelida Aquiles, / fúria funesta responsável por inúmeras / dores aos dânaos, arrojando magnas ânimas / de heróis ao Hades, pasto de matilha e aves.”

A 'Ilíada' narra os eventos do décimo e último ano da Guerra de Troia, conflito para a conquista de Ílio (ou Troia), sendo considerado o mais antigo documento literário grego Foto: John Flaxman

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No mundo mítico da Ilíada, os deuses participam diretamente dos acontecimentos, que se dão sob os desígnios supremos de Zeus; seu filho Apolo deflagrara a peste que arruína os homens. No verso 11 do Canto I, surge a referência a Crises, sacerdote de Apolo, que fora pedir de volta sua filha Criseida, espólio de guerra, ao comandante do exército Agamêmnon, sendo hostilizado por ele; recorre, então, ao deus, que o atende, desferindo as flechas pontiagudas que fariam multiplicar as piras fúnebres: “Mirou primeiro os mulos e a matilha arisca, / depois seus dardos afilados buscam homens; / e as piras sempiardiam, cheias de cadáveres”.  A incerteza dos destinos era desvendada por um vate ou sacerdote; a pedido de Aquiles – que reunira o povo na Ágora, diante de Agamêmnon –, o oniromante Calcas esclarece “a razão da cólera apolínea”: “Censura, não por falta de hecatombe ou prece, / mas por quem Agamêmnon humilhou, o vate: não lhe devolve a filha, renegou resgate, / por isso a dor que o arqueiro dá e há de dar”.  Após receber com fúria (“seus olhos eram como o fogo flamejante”) os augúrios do “profeta do revés”, Agamêmnon aceita devolver Criseida, para que findasse a vingança do deus “flecheiro”; mas pede, em troca da concessão, a companheira de Aquiles, Briseida, prenda que o guerreiro fizera por merecer.  Em seu Posfácio à primorosa edição bilíngue recém-lançada, diz Trajano Vieira: “a desonra que [Aquiles] sofre, ao ser obrigado a entregar Briseida ao líder atrida, macula sua glória. O desprestígio afeta o motivo principal que leva um herói a lutar: acumular, além dos prêmios (geras) de reconhecimento à sua honra (timé), narrativas sobre seus feitos de grandeza”. A “personalidade inflexível” de Aquiles – que abandona a guerra por sugestão de sua mãe, a deusa Tétis – levaria incontáveis gregos à casa de Hades, o mundo dos mortos. Tanto o atrida (filho de Atreu) Agamêmnon, como o pelida (filho de Peleu) Aquiles, tomados pela ira (mênis), conduzem-se ao estado de espírito tresloucado, de extravio humano, referido pelo termo áte, de múltipla significação – objeto, entre nós, de estudo de André Malta, também tradutor de cantos da épica homérica –, pois, além de denominar uma deusa, Áte, abrange tanto as noções de erro, cegueira, loucura e engano, referentes à condição espiritual, como também de ruína, desgraça, calamidade, relativos a suas consequências; para Malta, a palavra “perdição” poderia abranger o amplo sentido do termo grego. No canto IX da Ilíada, no qual Aquiles se recusa a abandonar sua fúria diante dos pedidos de Odisseu, Ájax e Fênix, que comunicam a ele a disposição de Agamêmnon de lhe devolver Briseida e dar-lhe numerosas dádivas, a palavra áte aparece no discurso de Fênix, traduzida por Trajano Vieira como “Ruína”: “Doma teu coração imenso! Não alojes / impiedade na alma! Até os deuses dobram-se, / e têm mais força e têm mais honra e são maiores [...] Na condição de filhas do grão Zeus, as Súplicas, / coxas, estrábicas, rugosas, correm rápidas / no encalço de Ate, Ruína, mas a Ruína tem / vigor e ágeis pés e deixa todas muito / distantes e percorre toda a terra à frente”.  A calamidade, portanto, prevalece sobre as súplicas. A história que se conta – desde essa terrível desavença, até as honras fúnebres a Heitor, o melhor dos troianos, filho do rei Príamo, concedidas a este por Aquiles, por decisão de Zeus –, é tão conhecida quanto (já se pode dizer, após cerca de 29 séculos) eternamente lida e admirada. Sua perenidade – e, por meio dela, a dos heróis que a integram – pode ser comparada à imortalidade divina; se “não seria um erro supor que a curiosidade dos deuses pelos homens se deve ao fato de estes possuírem algo que os primeiros desconhecem: a transitoriedade”, também, penso, não será um erro entender que a curiosidade do humano, ciente de sua brevidade, pelos relatos épicos se deva à sua infinda busca de imortalidade. A eternidade dos deuses, como observa Trajano, não lhes garante a completude; a nossa transitoriedade, reciprocamente, anseia pela completude do eterno. A dimensão de perpetuidade da poesia deve ser o que motiva, nestes tempos, um mortal a dedicar-se à exaustiva tarefa de recriar poeticamente, mais uma vez, os 15.693 versos da Ilíada, depois de tantos outros o terem feito. Dá o que pensar, neste mundo fugaz e ávido, a resistência dessa poética nascida na oralidade, nas histórias cantadas, e a força que impulsiona, indefinidamente, um tradutor a reescrevê-la, bem como um leitor a lê-la em nova voz. Antes de Trajano Vieira, quatro brasileiros realizaram traduções em verso dos 24 cantos da Ilíada: Manuel Odorico Mendes (1799-1864), Carlos Alberto Nunes (1897-1990), Haroldo de Campos (1929-2003) e Christian Werner, cujos trabalhos nos propiciam reviver, de modos diversos, a poesia épica em nossa língua, enriquecem a nossa própria literatura e são modelares, por suas especificidades, para o estudo da tradução poética. A fim de dar uma ligeira ideia da riqueza que as diferentes visões sobre a tarefa da recriação propiciam, focalizemos breves excertos do poema.  O primeiro verso já revela pontos de vista diversos dos tradutores. Odorico (cuja tradução veio à luz em 1874) preferiu associar dois termos para dar conta do grande motivo da obra (que traduziu em versos decassílabos, adotando uma estética neoclássica de composição): “Canta-me, ó deusa, do Peleio Aquiles / A ira tenaz [...]” – como anotou o tradutor, mênis é “ira não passageira”, e sinônimos de “ira” também não se aplicariam a Aquiles e “à paixão que nutriu longamente e às claras”; Nunes – que, em vez de usar um metro vernáculo, adaptou a nosso idioma o hexâmetro datílico do original – escolheu o termo “cólera”; Haroldo opta por “ira”, mas associando-a a “o irado desvario”, que alude ao aspecto duradouro do conceito e à ideia da perdição; Werner adota “cólera”, como Nunes; e, conforme vimos, Trajano usa o termo “fúria”, que lhe possibilita a sonora sequência “fúria funesta”, no segundo verso. Odorico explicitou a sua visão sobre o modo de traduzir as repetições características da natureza oral da epopeia. Para ele, são duas as classes de repetições em Homero: a primeira ocorre quando, por exemplo, “manda Júpiter [nome latino de Zeus] um recado, que o mensageiro dá pelos mesmos ou quase pelos mesmos termos”; a segunda seria a dos epítetos (atributos das personagens), muitas vezes repetidos. A atitude do tradutor diante das repetições homéricas (que incluem, de modo geral, as expressões formulares, elementos fundamentais da composição transmitida oralmente) ilustram muito bem as diferentes visões sobre o poema traduzido: Odorico diz optar por manter as da primeira classe, mas não as da segunda, pois isso seria enfadonho ao leitor; Nunes mantém as repetições, assim como Werner, cuja tradução em versos livres procura manter uma quase “literalidade” semântico-sintática do verso grego; Haroldo de Campos segue, em versos dodecassílabos, os preceitos de Odorico, geralmente mantendo as repetições da primeira classe e flexibilizando as ocorrências da segunda. Trajano Vieira – que, professor de grego, foi consultor de Haroldo para sua transcriação homérica – opta, assim como o poeta, por privilegiar o resultado do verso (também dodecassílabo) conforme a sua percepção de poeticidade, e, radicalmente, sem se ater – ou se atar – a critérios fixos de repetição. Assim, por exemplo, na parte inicial do Canto II, quando um recado de Zeus a Agamêmnon (“manda-o armar o quanto antes os aqueus / de longa cabeleira a fim de conquistar / a urbe troica. [...]”), transmitido a Sonho, é repetido mais duas vezes (pelo mensageiro e pelo atrida), a forma varia, em parte, a cada ocorrência.  O procedimento associa-se, de modo coerente, ao método composicional: Trajano assume integralmente a perspectiva de criar a sua Ilíada; para tanto, vale-se dos expedientes poéticos com que se identifica, buscando renovar a linguagem épica no contexto do leitor contemporâneo (que, ademais, pode ter em seu repertório a leitura de versões anteriores). Assim, transita dinamicamente pelo verso de doze sílabas, variando as posições das tônicas e valendo-se de enjambement (transbordamento de um verso no seguinte) com frequência bem superior à do verso homérico; colhe de Odorico os epítetos alatinados (como “dedirrósea”, para Aurora, e “bracicândida”, para Hera, entre tantos outros), e adota certas soluções de Haroldo; busca a síntese, própria da poesia moderna, mantendo em versos mais concisos o número de versos do original, mas sem abdicar da correspondência semântica necessária à transmissão das informações essenciais à narrativa, e sem recorrer a contorções sintáticas que dificultassem a leitura. Na linha haroldiana de pensamento, Trajano considera que sua incursão tradutória é uma releitura – rigorosa – do poema “do ângulo de quem busca reimaginá-lo numa configuração paralela”. Tal configuração envolve a ideia de que a dicção homérica, longe de ser simples ou prosaica, traz complexas relações entre som e sentido, como no ressonante verso 46 do canto I, “éklangxan d’ár oistoì ep’ ómon khooménoio”, assim por ele traduzido: “Tintinam flechas sobre os ombros do colérico”. Além da beleza, notável nos versos desta tradução, podemos reviver referências intemporais da condição humana – medos, paixões, tristezas – com a grandeza de uma poesia elevada. Um momento que nos diz muito de nós mesmos é aquele no qual, após a súplica de Príamo (que procurara, desprotegido, seu inimigo Aquiles) ao guerreiro para que lhe entregasse o cadáver de seu filho, ambos sinceramente choram: “A dupla rememora, um lamenta Heitor / massacrador, prostrando-se aos pés de Aquiles, / que ora pranteia o pai, ora pranteia Pátroclo. / E seus gemidos ecoavam pela casa”. A submissão de Príamo a Aquiles, que leva à trégua, remete ao tema do ensaio de Simone Weil incluído no volume: “A Ilíada ou o poema da força”, bem apropriado a nossos dias. Para finalizar, leitor/a, uma passagem que eterniza nossa existência, em fala de Glauco no Canto VI: “Igual à geração das folhas, a dos homens. / As folhas, umas caem com vento; a outras nutre, / durante a primavera, a selva vicejante. / Assim a geração humana: aflora e some.” 

ILÍADA AUTOR: Homero Tradutor: Trajano Vieira EDITORA: Editora 34 1.048 páginas R$ 129,00

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