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Nova tradução de Sigmund Freud atualiza conceitos estabelecidos

Em alemão, 'das unheimliche', que já foi vertido como 'o estranho familiar', 'o estranho' ou 'o inquietante', se transformou em 'o infamiliar', e isso faz toda a diferença

Por Amanda Mont’Alvão Veloso
Atualização:

Diz-se do horror que ele deixa sem palavras. Ecoam gritos, na melhor das hipóteses, como nos pássaros hitchcockianos que ameaçam os moradores ou no pavor de Adelaide ao se deparar com sua versão duplicada no mais recente filme de Jordan Peele, Nós. A experiência de nomear o horror é tão difícil que Freud buscou na língua alemã um vocábulo rotineiro e fez dele um conceito, o das unheimliche. Não qualquer horror, mas um das entranhas. Seu propósito era identificar os conteúdos perturbadores sentidos como familiares, ou seja, oriundos daquele que se horroriza. A angústia mostrava que o destinatário era também seu remetente. 

Lupita Nyong'o em cena de 'Nós' (2019), de Jordan Peele Foto: UNIVERSAL PICTURES

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Durante sua transmissão para outros idiomas, o das unheimliche atravessou barreiras linguísticas e recebeu diferentes alcunhas, com heterogeneidade mundial. No Brasil, por exemplo, o conceito, apresentado no texto homônimo de 1919, pode ser referido como "o estranho familiar", "o estranho" ou "o inquietante", presentes nas traduções realizadas pela Imago e pela Companhia das Letras. A mais nova proposta, O Infamiliar, vem agora da editora Autêntica, em lançamento bilíngue e que acentua os 100 anos da publicação fundadora. 

Desde o texto original, a criação do conceito é acompanhada pelo leitor, que passeia com Freud pelos sentidos disponíveis da palavra heimlich e sua referência ao familiar, conhecido, doméstico, íntimo. Mas é justamente no interior desta intimidade que se hospeda o oculto, o secreto e o desconhecido, fazendo com que haja uma coincidência entre heimlich e o seu oposto, unheimlich. Uma presença assustadora por não ser conhecida e familiar, mas sentida como desconfortavelmente pertencente àquele que a sente. Freud detecta na língua alemã um mal-estar universal, vivenciado em experiências particulares: "o infamiliar é uma espécie do que é aterrorizante, que remete ao velho conhecido, há muito íntimo."

Para caracterizar a indeterminação presente no conceito, a tradução de Ernani Chaves e Pedro Heliodoro Tavares, por sugestão do germanista Romero Freitas, emprega o neologismo infamiliar em resposta semântica e morfológica aos usos que Freud fez de unheimliche. O un de heimlich aqui vira in e alude à marca do recalcamento do conteúdo até então conhecido, ou seja, ao processo que o tornou inconsciente. O texto de apresentação, assinado por Tavares e Gilson Iannini, traz um percurso rumo à invenção do termo, passando pela admissão de sua incompletude e pela confirmação da dimensão do irrepresentável - algo bastante explorado por Freud no conceito. "O 'infamiliar' não é, nesse sentido, resultado da fidelidade da língua de partida, mas o vir à tona da infidelidade que tornou possível a transposição do hiato entre as línguas. É uma marca visível da impossibilidade da tradução perfeita", explicam. 

O pavimento escolhido para o ensaio freudiano é o conto O Homem da Areia, de E. T. A. Hoffmann. A literatura fantástica escolhida dá a Freud terreno para observar o infamiliar no assustador personagem que arranca os olhos das crianças. Os efeitos de assombro são comentados e reconectados com seu "núcleo de familiaridade". Na sequência, o pai da psicanálise localiza o que há de infamiliar nas situações em que as repetições nos dão a sensação de algo inescapável e fatídico. Tais ideias são pistas das inquietações suscitadas pela morte, tema que iria ressignificar toda a obra do autor, especialmente com a proposição, nos anos seguintes, de um novo modelo do inconsciente, com as instâncias do eu, isso e supereu. 

Outras indicações da infamiliaridade são trazidas pela onipotência de pensamentos, pelo complexo de castração e pelas repetições involuntárias. O tema do duplo, tão presente no cinema, na literatura e na televisão, recebe um investimento maior. Ao longo do texto, em idas e vindas por vezes abruptas, Freud assinala exemplos diversificados, extraídos da arte ou de situações clínicas. Com seu estilo didático, ele frequentemente expõe as contradições e os vácuos encontrados nas infamiliaridades apresentadas. O movimento é franco, mas também fomenta dúvidas, pois algumas afirmações ficam suspensas. A abertura provocada é admirável, e dela vem um convite para uma investigação mais detalhada, especialmente no que concerne às questões clínicas. 

Os desdobramentos variados que o texto promove ficam explícitos com os ensaios que acompanham esta edição, escritos por Ernani Chaves, Guilherme Massara Rocha, Gilson Iannini e Christian Dunker, além de um posfácio de Romero Freitas. O livro traz também a tradução do conto examinado por Freud e os textos Sobre o sentido antitético das palavras primitivas e A negação, situando a evolução do pensamento freudiano e sua prestação de serviços à linguagem. 

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Referenciado pela literatura e pela estética por ineditamente dar uma origem aos aspectos sombrios e ocultos recolhidos de certas criações artísticas, O Infamiliar é, paradoxalmente, um potencial disparador de análises aprofundadas sobre a vida em sociedade, especialmente quanto às expressões de crueldade, autoritarismo e desumanização verificadas no convívio - a realidade brasileira que o diga. O que se observa no doméstico repercute no coletivo. A monstruosidade é admissivelmente humana, o que não significa que consigamos escapar do constrangimento de reconhecer em nós mesmos o berço do horror. As guerras são uma terrível confirmação do íntimo destruidor de determinados agrupamentos - não à toa, o ensaio foi escrito logo após a 1a Guerra Mundial, por um Freud claramente afetado pelas angústias dos combatentes que não conseguiam esquecer as barbaridades do front. É no infamiliar território do "e eu com isso" que o eu perde a coesão e aparece o imponderável. Mas é também onde se pode acolher o contraditório e inaceitável que habitam cada um de nós.*É PSICANALISTA, JORNALISTA E MESTRANDA EM LINGUÍSTICA APLICADA PELA PUC-SP

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