Novo livro de Nassim Taleb defende a virtude do risco

Ensaísta libanês naturalizado americano publica 'Skin in the Game'

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Por Martim Vasques da Cunha
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Desde 2004, o ensaísta libanês (naturalizado americano) Nassim Nicholas Taleb sofre de algo que ele abomina: ser catalogado, enquadrado, classificado e analisado, como se fosse um espécime em laboratório. Ora o “guru” que revelou o que ocorre quando você é “traído pelo acaso” (como afirma no seu primeiro livro, Fooled By Randomness); ora “aquele cara do Cisne Negro” (apelido ganhado ao publicar o perturbador A Lógica do Cisne Negro, de 2007, lançado um ano antes da crise econômica que marcou a nossa época); ora distorcido pelos consultores e investidores trendys como “o estrategista Antifrágil” (algo comum a partir de 2012, quando lançou sua magnum opus, Antifrágil – Coisas que se Beneficiam com o Caos), na verdade Taleb não se importa com a reputação que lhe deram, preferindo sempre erguer o dedo do meio a quem insistir nessas etiquetas – pois o fundamental para si mesmo, em todos esses feitos, é que ele assumiu plenamente o risco de defender suas ideias em torno de uma atitude incrivelmente simples (mas não menos complexa): a do “skin in the game”.

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O ensaísta libanês naturalizado americano Nassim Taleb Foto: Ongo.Com

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Diz a lenda que este termo, popular em Wall Street, foi criado pelo bilionário Warren Buffett para descrever a postura do investidor que sofre as consequências das suas apostas no mercado financeiro, sem incorrer na transferência de prejuízo ou de culpa a outrem. Porém, Taleb – que, depois de ter ganhado seu patrimônio graças a ousados investimentos, decidiu dedicar-se à filosofia e ao hábito de ser um flâneur – o elevou a uma nova categoria epistemológica. Para ele, skin in the game é o verdadeiro filtro que orienta não só nossas ações éticas no âmbito privado, como sobretudo molda as virtudes interiores para a vida pública, sem cair nas armadilhas do exibicionismo moral da modernidade ou da ausência daquilo que Hans Jonas chamava de “o princípio responsabilidade”. Não é apenas uma questão de manter sua honra particular. É mais do que isso: é ser um exemplo para os outros ao seu redor e ter como único juiz a sua consciência individual. Trata-se de assumir a virtude do risco sem se esquecer de que, quando a realidade se impor, você será obrigado não só colocar a sua “pele em jogo” – como diria uma tradução aproximada (e errônea) do conceito –, mas principalmente “pôr o seu na reta”, segundo a boa, velha e cristalina língua portuguesa.

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Taleb intuitivamente orientou a sua obra para a discussão em torno do skin in the game, uma vez que os livros que lhe deram fama formam um único corpus intitulado Incerto (além dos três citados que fizeram sucesso no mundo dos negócios, há um outro, The Bed of Procrustes, uma reunião de aforismos similares aos de Karl Kraus). Há poucos dias foi anunciado o lançamento do quinto tomo (a sair no dia 27 de fevereiro), dedicado exclusivamente ao assunto do que fazer quando o mundo exige que você sofra pelos seus erros – e que será obviamente intitulado Skin in the Game – Hidden Assymetries of Daily Life (algo como “Com a Pele em Jogo – As Assimetrias Ocultas do Cotidiano”). Antes disso, Taleb já antecipara vários trechos na internet, em especial na sua conta no Twitter, arena pública que usa com o prazer de polemista e onde combate ilustres representantes daquela classe que ele chama de “Intelectuais, Porém Idiotas” (Intelectuals Yet Idiots, abreviado pelo acrônimo IYI), como o pretenso divulgador científico Steven Pinker, a celebrada historiadora amadora Mary Beard – e o enxadrista (e dublê de comentarista político) Gerry Kasparov. Entre capítulos da sua nova criação e fórmulas extremamente complicadas de matemática e estatística, Taleb solta insultos divertidíssimos a quem não entende os seus princípios, das celebridades ao mais comum dos leitores, incluindo aí os jornalistas da grande mídia, pois, segundo seus preceitos, eles não compreenderiam que o mundo real é muito melhor (e muito mais perigoso) do que as abstrações sofisticadas que construíram para suportá-lo.

Essa atitude de “sem misericórdia” com todos que o leem prova como Taleb leva a sério o princípio epistemológico do skin in the game. Para muitos, parece algo rude e até malcriado. E é mesmo. Contudo, não confundamos boa educação com boas maneiras. Segundo Taleb, filho de uma família tradicional libanesa (dizem que seria primo distante do presidente Michel Temer), a pior educação é aquela que tem a pretensão de “ensinar os pássaros a voar”, reduzindo o ser humano a um esquema arbitrário, pretensamente racional, e que, por isso mesmo, retiraria a responsabilidade dos seus atos, sem assumir risco nenhum, pronto para colocar a culpa nas circunstâncias sociais, no curso da História, no Estado Provedor ou, no pior dos casos, na técnica perfeita da estatística mal compreendida.

Portanto, o skin in the game é mais do que dizer a verdade incômoda aos que dominam a casta do establishment. É encarná-la e vivê-la em sua plenitude, mesmo que isso cause sofrimento a quem o pratica. E isso só pode acontecer por meio de exemplos concretos, de ações, não nas palavras edulcoradas em retóricas sedutoras. Talvez Taleb não conheça os dois exemplos a seguir, mas certamente ele diria que representam à perfeição o que significa “pôr o seu na reta”. O primeiro é o do filósofo checo Jan Patocka (1907-1977), discípulo de Edmund Husserl e Martin Heidegger, inspirador do clássico ensaio The Power of Powerless (1977), de Václav Havel, e que, igual a Sócrates, morreu de um derrame cerebral causado após uma intensa sessão de interrogatórios feita pela StB, a polícia secreta da então Checoslováquia dominada pela URSS. Ao contrário dos intelectuais de gabinete que se escondem nos seguidores de redes sociais e usam das preocupações mesquinhas da política para disfarçar a dispersão que os impede de criarem obras realmente relevantes, Patocka não morreu porque defendia alguma ideologia, e sim porque desejava ver a verdade triunfar acima de qualquer governo – além de ter encontrado tempo, no meio de tanta tribulação, para escrever dois livros fundamentais na filosofia europeia no século 20: Platão e Europa (2002) e Ensaios Heréticos sobre a Filosofia da História (1992).

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O outro exemplo seria o do pastor ucraniano Gennadiy Mokhnenko, assunto do soberbo documentário Almost Holy (2014), de Steve Hooper, e que medita sobre como ele educou crianças rendidas ao vício das drogas e como as ajudou a se reerguerem com o uso de métodos bastante iconoclastas, indo do xingamento explícito ao confronto direto, passando pela admoestação carinhosa. Gennadiy (apelidado pelos seus órfãos de “crocodilo”) não apela para as técnicas piegas das organizações não governamentais que pregam a inocência do viciado. Muito pelo contrário: Gennadiy faz questão de que elas assumam seus erros porque, para ele, não há outra solução exceto abraçar o skin in the game, pôr o seu na reta constantemente, sem nenhuma hesitação, uma vez que, como ele próprio afirma em um dos seus sermões, “nós sonhamos com tempos bons, mas devemos nos preparar para tempos ruins”.

Aqui, Gennadiy entra em harmonia com o conselho de Taleb: a única maneira de impedir que sejamos atingidos pelos “cisnes negros” – os eventos imprevisíveis e extremos que podem destruir a nossa vida por completo – é usar o skin in the game como o limiar das nossas ações. Tudo se resume a perguntar-se a si mesmo: você está disposto a assumir a virtude do risco? Caso contrário, se recusar a fazer isso, o preço a se pagar sempre será alto demais, sabendo que, como diria La Rochefoucauld em um dos seus célebres aforismos, “a perfeita coragem é fazer sem testemunhas o que seríamos capazes de fazer diante de todos”.  *Martim Vasques da Cunha é autor dos livros 'Crise e Utopia - O Dilema de Thomas More' (Vide Editorial, 2012) e 'A Poeira da Glória - Uma Inesperada História da Literatura Brasileira' (Record, 2015) 

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