O abraço trágico das águas

Historiador relata sua experiência de naufrágio e os segredos de viajar por rios amazônicos

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Por Victor Leonardi
Atualização:

Quem nunca naufragou não sabe muito bem do que se está falando depois de ter lido uma notícia de naufrágio nos jornais. Naufragar é uma experiência terrível. Já passei por isso na Amazônia, há muitos anos, e até hoje não encontro palavras adequadas para expressar o que senti durante aqueles momentos decisivos do salve-se-quem-puder. As águas do Rio Solimões quase me engoliram. Era o mês de junho de 1982 e eu estava navegando entre a cidade colombiana de Leticia e uma cidadezinha brasileira chamada Atalaia do Norte, que fica no Rio Javari, na fronteira com o Peru. Como em tantas outras áreas amazônicas, o único meio de transporte ali no Javari é o barco. A navegação fluvial fez parte da vida dos ribeirinhos nesses trechos remotos do Norte do Brasil, desde o início da colonização. Só mudaram os perfis das embarcações e a tecnologia, com as velas e os remos substituídos pelo vapor, em meados do século 19, e pelo motor diesel, no século 20. Mas o ato de viajar sobre água continua o mesmo desde tempos imemoriais. Alguns povos indígenas foram muito ligados às canoas e aos rios, e os portugueses, quando chegaram, trouxeram na bagagem conhecimentos seculares de construção naval. Essa arte - trazida da Ilha da Madeira - sobrevive até hoje em estaleiros de Novo Airão, na margem direita do Rio Negro. Conversei com carpinteiros navais em várias ocasiões nessa cidade amazonense. Eles mantêm uma tradição que passa de pai para filho há 200 anos. Nenhum freqüentou universidade: a formação de cada carpinteiro demora oito anos e é feita no local de trabalho. São homens que falam de sua profissão com respeito e carinho, como faziam os artesãos no Renascimento. Conhecem as sutis características de cada madeira amazônica, pois vivem à beira d?água em contato permanente com a floresta. Os barcos nunca são exatamente iguais. Cada um tem histórico diferente, e os ribeirinhos sabem os nomes de seus proprietários, potência do motor, número de horas ou dias de viagem entre uma localidade e outra. Narram aventuras, repetidas vezes, nos flutuantes e barrancos por onde passei nos últimos 48 anos. Nasci no interior de São Paulo, mas estive no Amazonas e no Pará em fevereiro de 1960, pela primeira vez. Foi uma viagem que mudou minha vida. Quando escrevi o livro Os Historiadores e os Rios (história ambiental e social dos vales dos Rios Jaú, Carabinani e Unini), eu já freqüentava a Amazônia havia 30 anos e tinha na cabeça um vasto acervo de histórias de naufrágios, pescarias, marinhagens e mitos: botos que seduzem mulheres, seres encantados que vivem no fundo dos rios. Viajar sobre água não é como dirigir no asfalto. Barco não é só meio de transporte: é local de encontro, de diálogo, de aprendizagem, com todos os temas se entrecruzando. Viajando entre Benjamin Constant e Manaus - viagem de seis dias, passando por São Paulo de Olivença, Fonte Boa, Tefé, Coari e Manacapuru -, ouvi, em minha rede, lá pelos anos 1980, uma extraordinária combinação de depoimentos sobre agricultura de várzea, preço da borracha, sobrevivência na selva, o messianismo do Zé da Cruz, as terras indígenas ticuna, a boa farinha do Ariri, cobras colossais, receitas para se preparar uma caldeirada... Isso é mais do que viagem no espaço, parece mistura de tempos e transgressão de normas, com a imaginação sendo estimulada pelas águas, pela fantasia, pela criatividade, pela curiosidade. Nas noites amazônicas, quando cai uma tempestade braba, o banzeiro sacode duramente o barco - isso me aconteceu em 1996 no Rio Madeira, o de navegação mais perigosa - e provoca um certo silêncio a bordo. Mas nas noites de lua cheia tudo é paz, dá para ver o reflexo das árvores na água, e ninguém quer dormir. Alguns jogam baralho ou dominó. Outros tocam violão, bebem cerveja e procuram namorada. Muitos barcos levam 100 ou 200 passageiros, e a confraternização é grande ao cabo de alguns dias. No ano 2000, durante a Expedição Humboldt, que o biólogo Cézar Martins de Sá e eu coordenamos (49 cientistas navegaram 62 dias e passaram por 14 rios amazônicos da Venezuela e do Brasil), nossas pesquisas não teriam sido realizadas sem a colaboração permanente da tripulação do Veloz I, um barco azul de madeira, muito bonito, do qual até hoje tenho saudades. Os práticos, que pilotaram o barco em trechos diferentes, conheciam intimamente aquelas águas, pedras e perigos. Quando a tripulação é competente e o comandante, responsável, o risco de acidentes é mínimo. Às vezes ancorávamos dois ou três dias em um lago, e então os botos, à noite, não me deixavam dormir, por sua forte respiração. São animais curiosos e simpáticos. Rodeavam nosso barco a noite toda. Foi assim a jusante de Santa Isabel, no Rio Negro, e nas imediações de Barcelos, a antiga capital do Amazonas. Pesquisar em laboratório de câmpus universitário é bem diferente de pesquisar a bordo de um laboratório que desliza sobre águas do Rio Amazonas, ou do Nhamundá, ou do Tapajós, ou do Trombetas, ou do Maués-Açu, como nós fizemos. Tínhamos uma biblioteca amazônica a bordo e conversas multidisciplinares interessantíssimas, algo raro no câmpus, onde predomina a compartimentação departamental do pensamento. Hidrologia, botânica, zoologia, ecologia, biologia molecular, engenharia florestal, antropologia, economia, geografia, fotografia, pintura, cinema, todas essas ciências e artes navegaram conosco, durante 62 dias, naquela expedição organizada pelo Núcleo de Estudos Amazônicos da UnB. Eu já era professor de História da Amazônia havia vários anos e fiz um filme documentário a partir de imagens e entrevistas gravadas por Frederico Rêgo durante aquelas semanas. Conversei sobre naufrágios com muita gente. Um dos marinheiros do Veloz I tinha passado uma noite inteira no escuro, nas águas do Amazonas, em 1998, a montante de Parintins, antes de ser localizado e salvo, na manhã seguinte. É uma experiência intransferível, só quem já passou por isso consegue fazer interrogações a respeito da vida e da morte. O tema dos naufrágios faz parte da história da literatura desde Homero e daquela cena de Ulisses agarrado ao mastro do navio que acabara de afundar (não se pode desafiar Poseidon). Conrad e Melville gostavam desse tema, que é clássico na literatura portuguesa: Camões naufragou na Ásia, no Delta do Mekong. Eu estava tão fascinado pelas grandes navegações portuguesas que escrevi um livro sobre esse tema - Os Navegantes e o Sonho -- e dei um curso em Berkeley, na Universidade da Califórnia, para estudantes de literatura latino-americana, sobre o naufrágio e a trágica viagem de madame Godin des Odonais. Apaixonada por um cientista francês, com quem se casou no século 18, essa mulher foi de Cuenca, atual Equador, até Caiena, atravessando toda a Amazônia brasileira, em busca do marido, movida pela força do amor. É uma história fora do comum, de quem viveu à deriva, na errância, "na eternidade a cada instante", como diria Agostinho da Silva, entre povos indígenas e hábitos portugueses arcaicos. Ou seja, essa mulher, depois do naufrágio e durante os meses em que vagou pela floresta, auxiliada por índios e caboclos, foi retirada de seu próprio tempo, de seu tempo individual, cronológico, histórico, e projetada simbolicamente no Grande Tempo mítico, no qual abordou uma realidade "impossível de ser alcançada", segundo Mircea Eliade, "no plano da existência individual e profana". Foi mais ou menos o que também senti, lá no Alto Solimões, em 1982, depois de ter naufragado. Confessei isso para meus alunos de Berkeley, enquanto comentávamos o texto de 1773 sobre o naufrágio de madame Godin des Odonais. Li as notícias do naufrágio que acaba de ocorrer no Solimões, nas proximidades de Manacapuru. Algo terrível, mais uma vez. Falam de 47 mortos, e parece que esse número vai aumentar, pois várias pessoas continuam desaparecidas. Sinto a terribilidade em meu próprio ser, é como se eu estivesse lá. E me revolto, porque um acidente desse tipo não é uma fatalidade. Fatalidade é ser tragado por redemoinho, como acontece com freqüência no Rio Madeira (um cemitério de embarcações), ou ver o casco do barco sendo perfurado por um tronco de árvore que a correnteza arrastou com força no Rio Beni, lá na fronteira do Brasil com a Bolívia. O que acontece agora em Manacapuru não foi nada disso, foi outro tipo de coisa, chamada irresponsabilidade, imprudência, imperícia, falta de vigilância, descaso administrativo: fatos corriqueiros na cultura da impunidade e do ilícito na qual o Brasil está naufragando. É claro que a flora e a fauna devem ser protegidas na Amazônia, e que o desmatamento é problema sério, e os rios não podem continuar sendo poluídos por mercúrio. Mas é também verdade que aqueles simpáticos ribeirinhos viageiros, que dependem dos barcos para quase tudo o que fazem, têm o direito de navegar com segurança, em embarcações limpas e sem excesso de passageiros, pois esse direito faz parte do direito à vida. Como dizia o poeta Fernando Pessoa, "uns governam o mundo, outros são o mundo". Esses outros somos nós, que devemos protestar e exigir que nos respeitem. A fiscalização rigorosa dos barcos amazônicos é dever do Estado. *Victor Leonardi, historiador e escritor, integra o Centrode Estudos Avançados Multidisciplinares da UnB

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