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Blind Tom, o americano cego filho de escravos que ganhou fama na música

Legado de Thomas Wiggins, o Blind Tom, é revisitado mais de 100 anos após sua morte

Por Anthony Tommasini
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Em 1849, Charity Wiggins, escrava que trabalhava nas plantações na Geórgia, tinha 48 anos quando deu à luz um menino. A criança, que recebeu o nome de Thomas, nasceu cega e sua mãe temia que o proprietário iria considerá-la um peso inútil, com consequências potencialmente terríveis. O que certamente ocorreria, bem antes de sua família - cinco na época - ser colocada à venda pelo fazendeiro para, com o dinheiro, pagar suas dívidas.

Thomas Wiggins, o Blind Tom, que era cego e filho de uma escrava, mas alcançou sucesso musical no século 19 Foto: George Kendall Warren/National Portrait Gallery

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harity fez um apelo ao general James Neil Bethune, um advogado ferozmente defensor da escravidão e editor do jornal de Columbus, para manter a família unida; e, provavelmente por piedade, ele concordou em comprar todos. E não imaginava que a compra dos Wiggins o deixaria rico.

Em uma década, o filho de Charity se tornou um fenômeno musical, ganhando até US$ 100.000 por ano, o que equivale a bem mais de US$ 1 milhão nos dias de hoje, o bastante para torná-lo um dos artistas mais bem pagos da sua época. Sob o nome “Blind Tom” Wiggins, ele tocava suas próprias composições e improvisava ao piano, mostrando uma habilidade assombrosa para copiar, nota por nota, peças que ouvia - composições clássicas e músicas populares.

Uma das suas proezas era tocar Fisher’s Hornpipe com uma mão e Yankee Doodle com a outra, e cantar Dixie ao mesmo tempo. Repetia discursos políticos que ouvira meses antes, imitando as cadências vocais do orador, e até em línguas estrangeiras que desconhecia.

Existem inúmeros depoimentos sobre suas inexplicáveis habilidades, mesmo se com frequência eles têm uma conotação paternalista ou índole supremacista branca. Durante uma turnê pela Europa quando tinha 16 anos, Wiggins foi elogiado por grandes músicos. O compositor e pianista Ignaz Moscheles considerou-o um “fenômeno singular e inexplicável”. O violinista norueguês Ole Bull, apesar de insistir que ele não era um prodígio no sentido tradicional, descreveu Higgins como uma “maravilhosa aberração da natureza”. Mark Twain acompanhou a carreira de Wiggins por anos.

Embora dotado de talentos impressionantes, seus concertos eram espetáculos excêntricos. Ele tinha o hábito de rodar e movimentar seu corpo como se tivesse espasmos quando tocava e mesmo quando era promovido como “maravilha do mundo” muitos o qualificavam de “idiota”, até “imbecil" (é possível que ele tivesse um pouco de autismo).

Muito pouco do que ganhou financeiramente foi diretamente para o seu bolso. Bethune assinou um contrato com um ambicioso promotor. Após a emancipação, Wiggins continuou basicamente um criado remunerado de Bethune que acabou se tornando seu tutor legal.

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Wiggins e suas obras passaram a despertar uma atenção cada vez maior no século 21, incluindo uma biografia de autoria de Deirdre O’Connell publicada em 2009 e baseada num trabalho anterior da musicóloga Geneva Handy Southall. John Davis fez uma gravação pioneira de 14 composições dele em 1999 para o selo Newport Classics - um trabalho de amor que incluiu encartes extensos com ensaios assinados pelo neurologista Oliver Sacks e o ativista Amiri Baraka.

Entre as peças há partituras fascinantes como Oliver Galop, Virginia Polka e The Rainstorm, que evocam estilos clássicos do século 19, como também canções de salão e música de dança da época. Davis também fez uma descrição emocionante da peça mais extraordinária de Wiggins, The Battle of Manassas, uma peça de quase oito minutos de duração composta por volta de 1863, quando Wiggins tinha 14 anos e que evoca a primeira grande vitória do exército Confederado, um acontecimento que foi contado para ele em detalhes.

 Essa peça foi o ponto alto de um recital que o pianista Jeremy Denk deu em outubro no Caramoor. Denk não conhecia a obra antes de ler sobre ela num artigo publicado no New York Times em julho do ano passado em que o compositor George Lewis propôs um novo repertório de obras antigas e novas de compositores negros. Numa rápida conversa com Lewis, juntamente com sua apresentação no Caramoor, Denk descreveu Manassas como um exemplo fascinante “de modernismo antes do seu tempo”. Uma peça com harmonias dissonantes e impertinentes e uma justaposição de materiais incongruentes.

A peça começa brutalmente, com sons de canhões e pisoteios sugeridos entre acordes em bloco que Denk toca com a palma da mão ou o punho (Wiggins usou o acorde em bloco várias décadas antes de Henry Cowell receber o crédito por ter inventado essa técnica).

Sobre esses acordes ouvimos, em registro alto, a jovial canção The Girl I Left Behind Me e logo depois, Dixie, no meio dos acordes que continuam.

Os episódios seguem com os sons de tons de marcha com pífanos e tambores, clarins de fanfarra e de repente retoma um lirismo ao estilo de Chopin, como as melancólicas canções de salão.

Uma passagem de transição, com cintilantes tremolos agudos, leva a uma Marselhesa tocada com acordes cheios, sobre um saltitante acompanhamento, embora não parem os ruidosos blocos nos graves.

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O final “chocante para aqueles tempos”, segundo Denk, descreve a retirada das forças da União e é uma viva apoteose, com o hino nacional tocando em acordes incessantes, uma retomada da Marselhesa, com estrondos furiosos de oitavas Lisztianas, densos blocos e um curioso desvanecimento da música.

No artigo no Times, Lewis deu uma explicação para a aparente incongruência de um compositor negro, nascido escravo, comemorando um momento de triunfo da Confederação. O trabalho “pode ser ouvido hoje”, escreveu Lewis, “como uma antecipação do colapso do regime e uma trilha sonora do desmantelamento das estátuas confederadas, aqueles panegíricos impostos fisicamente a Jim Crown que meramente se posicionam como história”.

Davis, que planeja gravar outras obras pouco conhecidas de Wiggins, acrescentou que o compositor pode muito bem ter tido emoções que era incapaz de expressar. Seus movimentos de rotação física eram vistos pelo público racista na época como evidência de que era ser primitivo. Mas Davis aponta para outro pianista cego da Georgia - Ray Charles, que, quando se expressava por meio de maneirismos físicos involuntários, era considerado o “máximo” na onda do rock’n’roll.

Uma reviravolta animadora na vida de Wiggins ocorreu em meados da década de 1880, quando o filho de Bethune, John, morreu num acidente. Eliza Bethune, viúva de John, depois de um breve casamento, ficou irritada por não ter sido contemplada em seu testamento e foi aos tribunais para tirar Wiggins da família e obter sua guarda, uma ação que foi apoiada pela mãe de Wiggins. Eliza ganhou a ação. O caso, que ocorreu em 1887, foi coberto pelo New York Times.

Mas Wiggins, insatisfeito com sua nova tutora, recusou-se, com raras exceções, a se apresentar no palco durante as duas décadas seguintes, até sua morte em 1908, aos 59 anos de idade, em seu apartamento em Hoboken, Nova Jersey. Esse pode ter sido o ato final de desafio de uma figura cuja vida e obra permanecem confusas, ambíguas, fascinantes e que deveriam atrair muito mais atenção. /Tradução de Terezinha Martino

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