'O Anel do Nibelungo', obra-prima de Richard Wagner, é lançada em quadrinhos

O quadrinista Philip Craig Russell já adaptou óperas de Mozart e Strauss, além de textos de Oscar Wilde e Neil Gaiman

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Por André Cáceres
Atualização:

Quando Richard Wagner montou pela primeira vez O Anel do Nibelungo, em 1876, não existia tecnologia suficiente para os efeitos especiais de uma história com deuses, dragões e magia. Nem mesmo a alta fantasia havia se desenvolvido na literatura e no cinema, encravando essa simbologia no imaginário popular. Coube aos cenógrafos, figurinistas e diretores inovar para apresentar a Gesamtkunstwerk (obra de arte total), conceito de Wagner que engloba todas as formas de expressão. Em 2000, o quadrinista Philip Craig Russell levou a cabo as instruções do compositor para criar a mais fiel adaptação possível de sua obra nos quadrinhos, em que deuses, dragões e magia são a regra. Agora a editora Pipoca e Nanquim lança pela primeira vez no Brasil a série em uma luxuosa versão encadernada e com capa dura.

Ilustração de Philip Craig Russell na HQ de 'O Anel do Nibelungo' Foto: Editora Pipoca e Nanquim

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Não é a primeira vez que O Ouro do Reno, A Valquíria, Siegfried e O Crepúsculo dos Deuses, as quatro peças de Wagner que compõem O Anel do Nibelungo, são adaptadas para esse formato. Entre 1989 e 1990, Roy Thomas – roteirista de Conan, que vem recebendo reedições no País pela Mythos – e Gil Kane – ilustrador de Blackmark (1971), primeira graphic novel de capa e espada americana – lançaram a tetralogia de Wagner em quadrinhos. No entanto, a ideia de Russell por trás de sua adaptação era entrar na mente do compositor e viabilizar o que nunca fora possível tornar realidade nos palcos, ambição que lhe rendeu dois prêmios Eisner em 2001. 

O Anel do Nibelungo começa com Alberich, um ser deformado e ganancioso – leituras posteriores associaram o personagem aos judeus, uma vez que a obra do antissemita Wagner foi assimilada pelos nazistas – que rouba o ouro do Rio Reno e, abdicando do amor, forja um anel mágico que lhe concede o poder de governar o mundo. Quando a joia lhe é roubada por Voton (Wotan, no texto original), deidade inspirada em Odin, Alberich amaldiçoa o anel, que passa de mão em mão, aflorando a ganância e trazendo desgraça a deuses, gigantes e homens que o portam. 

Wagner usou as mitologias nórdica e teutônica como fontes para compor sua tetralogia, mas tomou certas liberdades criativas em relação à personalidade dos deuses e aos eventos narrados nas lendas. Cada divindade presente na narrativa tem um paralelo com o panteão nórdico, mas Voton é mais impulsivo e menos sábio que Odin; Donner não é tão heroico quanto Thor; Logé não é moralmente ambíguo como Loki; e o declínio dos deuses não reflete o Ragnarok. 

A despeito dessas licenças poéticas, Wagner foi um dos responsáveis por perpetuar a mitologia nórdica no repertório da cultura pop. Sua releitura dessas tradições influenciou em grande medida o surgimento da alta fantasia na literatura, gênero que sempre aproveitou a mescla desse repositório de mitos com o imaginário medieval e as lendas arturianas. William Morris, J. R. R. Tolkien e C. S. Lewis são apenas três dos expoentes desse nicho. Tolkien, entretanto, rejeitava as comparações entre O Senhor dos Anéis e O Anel do Nibelungo. Ambas as obras de fato têm semelhanças temáticas notáveis e personagens muito similares, como Alberich e Gollum, porém nos níveis narrativo e estrutural há pouco em comum. Se o épico de Tolkien trata da corrupção inerente ao poder, o de Wagner medita a respeito da origem do mal. Em determinado ponto da quarta e última peça, a valquíria Valtraute (Waltraute, no original) pede a sua irmã, Brunhildé (Brunhilde, no texto de Wagner), que renuncie ao anel e o devolva às filhas do Reno para que o ouro repouse novamente em seu local de origem: “Irmã! Ouça-me! Ouça-me! O mal do mundo nasce dele”, adverte ela, ecoando o tema principal da obra. 

O Anel do Nibelungo não é a primeira adaptação do tipo que Craig Russell realiza. Nos anos 1980, o quadrinista já havia demonstrado sua paixão pela música quando lançou A Flauta Mágica, de Wolfgang Amadeus Mozart, e Salomé, de Richard Strauss, além da mais recente quadrinização de Pierrot Lunaire, de Arnold Schoenberg. No entanto, suas contribuições aos quadrinhos vão muito além do casamento entre desenho e música. Russell adaptou contos de fadas de Oscar Wilde, crônicas de Ray Bradbury e romances de Neil Gaiman, como Deuses Americanos e Coraline, além de ter dado vida a personagens como Batman, Doutor Estranho, Conan e Hellboy.

O traço de Russell apresenta referências variadas a quadrinistas clássicos. As transições por vezes pouco convencionais entre os painéis lembram algumas das inovações gráficas de Will Eisner (1917-2005), embora menos ousadas aqui; os planos abertos com figuras humanas menos detalhadas são marcas de nomes como Alex Raymond (1909-1956), autor de Flash Gordon; e as linhas de ação curtas e ágeis que se repetem, indicando profundidade, remetem ao trabalho de Dave Gibbons e Moebius. 

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Em O Anel do Nibelungo, Russell mantém a fidelidade nos diálogos, mas é nas seções instrumentais da obra de Wagner que o autor demonstra grande sensibilidade. Com longas sequências sem balões de fala (uma tendência seguida por quadrinistas mais recentes, como o francês Chabouté e o americano Richard McGuire, ambos recém-publicados por aqui), Russell traduz a melodia para cenas abstratas e contemplativas, como na criação do freixo do mundo que dá início ao álbum – e ao universo, pela mitologia. Um exemplo perfeito de fusão entre cultura pop e erudita.

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