O artista escravizado cujas cerâmicas constituíram um ato de resistência

Jarras poéticas de David Drake estabelecem recordes em leilões e brilham nos museus, mostrando a arte dos escravizados afro-americanos

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Por Jon Finkel
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A jarra manchada marrom parece um objeto humilde, mas singelo - algo que se encontraria no alpendre posterior das casas no Sul dos Estados Unidos. Quando nos aproximamos, vemos listras de esmalte alcalino riscando a superfície e algumas marcas reveladoras do artista conhecido como Dave, o Oleiro, ou David Drake, que moldou magníficas louças no distrito de Edgefield, na Carolina do Sul, onde foi escravizado por diferentes senhores.

Vaso de 1858 feito por David Drake, afro-americano escravizado Foto: Metropolitan Museum of Art

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No fundo do pote há três marcas que parecem impressões digitais, no lugar onde alguém - possivelmente Drake - mergulhou o vaso no esmalte. Logo abaixo da embocadura, há uma palavra que Drake inscreveu, com um graveto pontiagudo ou algo semelhante: “catination” variante de 'catenation', o estado da pessoa acorrentada ou presa no jugo. Igualmente notável, segundo os especialistas, é a data marcada na jarra, “12 de abril de 1836”, dois anos depois que a Carolina do Sul aprovou uma lei punitiva contra a alfabetização a fim de impedir que os escravos escrevessem, o que torna esta única palavra um ato extraordinário de resistência ou de desafio de Drake.

O jarro, de quase 38 centímetros de altura, é uma indicação das realizações artísticas dos afro-americanos escravizados e da persistente negação do seu trabalho pelas instituições culturais dos Estados Unidos durante quase 300 anos.

Portanto, quando em novembro, a jarra foi posta à venda na Brunk Auctions em Asheville, Carolina do Norte, despertou a atenção dos museus de arte de todo o país. O seu valor estimado era de US$ 40 mil a US$ 60 mil. Mas a competição entre os museus elevou o preço para US$ 369 mil com o prêmio do comprador, estabelecendo um recorde mundial em um leilão para a obra de Drake e encerrando um ano de importantes compras de suas peculiares peças de cerâmica pelas principais instituições.

Em 2020, entre os compradores estavam o Museu de Belas Artes de San Francisco, o Museu de Arte de Saint Louis, o Instituto de Arte de Chicago e o Metropolitan Art Museum, bem como o mais historicamente orientado Museu Internacional Afro-Americano, atualmente em construção em Charleston, na Carolina do Sul. Em um momento em que os diretores dos museus estão extremamente motivados e fortemente pressionados a repensar o preconceito racial que caracteriza as suas coleções, adquirindo e exibindo a extraordinária obra de Drake oferecem uma maneira dramática de fazê-lo, abrindo ao mesmo tempo uma janela sobre a história da escravidão.

Timothy Burgard, curador de arte americana dos Museus de Belas Artes, autor do lance vencedor para a jarra da “catination”, definiu estas aquisiçõesuma “guinada decisiva” nas histórias que os museus de arte americanos contam sobre a escravidão. Ele pretende instalar a jarra com grande destaque em uma galeria da Guerra Civil no Museu da Juventude no dia 1º de julho, “centrando simbolicamente a questão do sistema escravagista, que historicamente foi minimizado e marginalizado pelos museus”.

Vaso produzido em 1836 por David Drake, artista afro-americano escravizado Foto: Carlos Chavarria/The New York Times

Segundo o leiloeiro Andrew Brunk, “incontestavelmente, neste momento, as instituições estão liderando o mercado”. Ele descreveu a demanda de jarros com a escrita de Drake - desde apenas uma palavra até poemas curtos, porém expressivos - como particularmente forte.

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Estas inscrições ajudam a contar a história de Drake, da qual grande parte das informações biográficas está faltando. A julgar pelos registros do censo, Drake nasceu provavelmente em 1801, e morreu nos anos 1870. Os registros dos leilões mostram que ele teve vários donos na região de Edgefield, e que foi usado pelo menos uma vez como garantia de um empréstimo. Um registro de votação indica que ele adotou o nome Drake depois da emancipação, usando o sobrenome do seu primeiro senhor. Mas a sua biografia ainda contém vários hiatos. Não se sabe ao certo com quem aprendeu a trabalhar com a roda do oleiro. (Também fez potes à mão usando a técnica da bobina.) Tampouco existe um consenso a respeito de como aprendeu a ler e escrever.

O que se sabe é que fez muitos jarros para venda, alguns de até 40 galões [3,8 litros], o que demonstra a sua força física e seu virtuosismo com a argila, com a sua assinatura, “Dave”, em mais de 100. Ele escreveu versos e frases em pelo menos 40 dos que sobreviveram.

Ao todo, estes jarros-poemas, como são conhecidos, constituem uma espécie de diário, emprestando uma voz diferente às narrativas sobre os escravos que predominam na literatura negra deste período. Alguns, como o jarro recentemente adquirido pelo Met ou aquele pertencente ao Museu de Arte de Filadélfia desde 1997, descrevem a função dos potes ou gabam a quantidade de carne bovina ou de porco que podem conter. Outros exibem mensagens religiosas ou ditos espirituosos. Um poema de 1857 diz: “Fiz este jarro por dinheiro / mas o chamei / lucro sujo”. Outro, datado de 1854, diz: “Lm diz que esta alça / vai quebrar”. Os estudiosos estabeleceram que as iniciais se referem a um dos seus donos, Lewis Miles, que tinha a Stony Bluff Manufactory, e produzia louças usando o trabalho escravo. Como última crítica do oleiro, a alça continua intacta até hoje.

Outros versos podem ser compreendidos no clima de revoltas políticas da época. “I, made this Jar, all of cross/ If,you dont repent, you will be lost” [Em uma tradução bastante aproximada: “Eu, fiz este jarro, todo de cruz / Se você não se arrepender, estará perdido”] foi datado de 3 de maio de 1862, cerca de um ano após o início da Guerra Civil.

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A inscrição mais dolorosa começa com a frase: “I wonder where is all my relation” [Pergunto-me onde está minha relação]. O jarro, hoje no Museu de Arte do Condado de Greenville, na Carolina do Sul, é datado de 16 de agosto de 1857, vários anos depois que uma mulher escravizada de sua casa, chamada Lydia, e seus dois filhos foram mandados para a Louisiana, segundo o livro “Carolina Clay: The Life and Legend of the Slave Potter Dave”, de Leonard Todd, de 2008. Não se sabe se Lydia era a sua esposa.

Embora elogiado por sua pesquisa original, o livro de Todd também foi criticado por sua frequente especulação que coloca os senhores de escravos de Drake - alguns dos quais eram ancestrais de Todd - em uma luz favorável. Por exemplo, Todd relatou uma história, transmitida de geração em geração, mascontestada pelos especialistas, segundo a qual Drake perdeu uma perna após uma queda por ter adormecido nos trilhos do trem numa noite de grande bebedeira.

Jason Young, professor adjunto de história da Universidade de Michigan, especialista em religião e cultura afro-americana, acha este relato não confiável. “O que sabemos sobre os africanos escravizados e incapacitados é que inúmeros deles ficaram incapacitados ou por causa do perigoso regime de trabalho ou porque uma forma popular de punição consistia em cortar um pé ou uma perna por alguma infração”, disse Young em uma entrevista.

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A maioria dos curadores abandonou o apelido “Dave the Potter” em favor de David Drake. Emborareconhecendo que o sobrenome Drake poderia ser também problemático porque vem do seu primeiro dono, Burgard, o curador do museu de Belas Artes de San Francisco, afirmou: “Foi a escolha que ele fez quando se registrou para votar, e consta dos registros eleitorais. Para qualquer um chamá-lo pelo primeiro nome quando a rasura de identidade na escravidão é tão horrível, parece desrespeitoso".

Este apagamento biográfico é um dos maiores desafios para os museus que procuram exibir o trabalho dos artistas escravizados. Outro é o desdém mostrado pelo mundo artístico por muito tempo pelos objetosfuncionais.

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Tonya Matthews, diretora executiva do museu International African American, disse que o seu museu pretende mostrar a obra de Drake juntamente com objetos como cestos de ‘sweetgrass’ (uma erva aromática usada em rituais pelos nativos), na tentativa de ajudar “a desmantelar este mito antigo de que os escravos estavam desprovidos de qualquer habilidade”

Burgard, o curador de San Francisco, disse que os jarros de Drake também são um argumento poderoso para que os museus de arte reconheçam a importância dos objetos funcionais e utilitários.

“Se você não prestar atenção nestes objetos nunca apreciará de maneira adequada a história das mulheres, artistas não brancas ou escravizadas, porque é preciso olhar o que elas tinham a 'permissão' de fazer”, ele disse. “É preciso olhar estes potes. É preciso olhar as colchas. É preciso olhar o belíssimo trabalho em ferro batido dos balcões de Nova Orleans.

“Quantos edifícios, peças de mobiliário e jarros de cerâmica foram feitos por pessoas que eram escravizadas? Provavelmente milhões. Mas ninguém gravou os seus nomes”.

Onde apreciar importantes peças de cerâmica feitas por David Drake:

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Boston: Museum of Fine Arts, Boston, 1 Gallery 237.

Charleston, Carolina do Sul: The Charleston Museum, no First Hall do museu.

Chicago: Art Institute of Chicago, que será instalada no próximo inverno do hemisfério norte.

Greenville, Carolina do Sul: Greenville County Museum of Art, quando for reaberto no próximo inverno no hemisfério norte.

Nova York: Metropolitan Museum of Art, American Wing, Gallery 762.

Filadélfia: Philadelphia Museum of Art, Gallery 216.

San Francisco: Saint Louis Museum of Art, Gallery 336.

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Tradução de Anna Capovilla

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