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O astuto e impiedoso planeta Murdoch

Combinação de empresário global e microgerente da informação, o australiano assusta com seu calculismo

Por Lucia Guimarães
Atualização:

O novo cabo eleitoral de Barack Obama tem 77 anos, pinta o cabelo no tom acaju-parlamentar, ainda carrega no sotaque australiano, apesar de morar há décadas em Nova York, e controla uma companhia de US $ 62 bilhões. A News Corporation de Rupert Murdoch é o terceiro maior conglomerado de mídia do mundo, atrás da Time Warner e Walt Disney, mas pula para primeiro lugar se o critério for apenas capitalização. Não é à toa que Rupert assinou um cheque de US $ 5 bilhões em dezembro passado e comprou o trem elétrico que esperou dez anos para tomar de seus donos originais. Na quarta-feira, Rupert, vamos honrar seu populismo com o tratamento pelo primeiro nome, deu entrevista a Walter Mossberg, um dos colunistas que não deve despedir no Wall Street Journal - sua nova empresa preferida. A entrevista, descrita como cândida por boa parte da imprensa de língua inglesa, caiu como uma bomba na redação do Journal, e o motivo não foi o comentário do novo patrão, que descreveu o democrata Barack Obama como um fenômeno que deve ganhar a eleição de enxurrada. Rupert e Barack têm tanto em comum quanto Fernando Gabeira e o bispo Edir Macedo. Rupert é um conservador pós-ideológico e, apesar de ser o principal responsável pela emergência e propagação da direita colérica na indústria da informação, sua fidelidade tem limites (alô, sonoplastia, aqui inserção de ruído de caixas registradoras vintage). Na entrevista exibida em vídeo, Rupert declara que seu amigo John McCain "tem muitos problemas" - o ar compungido faz lembrar Tony Soprano já com saudade de um parente que vai ter que eliminar. O comentário citado ipsis litteris por um veterano e assustado membro da redação do WSJ foi mais crítico para o grande público: "Cada matéria publicada no WSJ envolve em média 8,3 editores e vai ficando cada vez mais longa... é ridículo. Você tem que conseguir comprimir todos os fatos em metade do espaço atual." Do outro lado do Atlântico, cultivando suas rosas em pequenos quintais de subúrbios, jornalistas britânicos aposentados pelo tsunami da compra do Times, de Londres, em 1982, exibem o melancólico sorriso substituto do comentário "Bem que avisei". É verdade que, mesmo antes de colocar suas mãos untuosas na massa do WSJ e despedir o estimado editor-chefe Marcus Brauchli em poucos meses, Rupert foi descrito nestes costados com o ceticismo informado pelas pegadas que deixou. Ninguém assina um cheque de 5 bi para se curvar a salamaleques de comitês que se comprometeu por escrito a acatar e perder tempo com essa bobagem de independência editorial. Nada irritou Rupert mais na década de 80 do que a elite jornalística britânica, a mesma elite que o rejeitou por ser australiano e grosso. Esse bando de esnobes com diplomas de Oxford e Cambridge, como eles se atreviam a decidir a hierarquia do noticiário? Se o massacre de mais de 100 mil em Burma provoca bocejos, servir Paris Hilton às massas sofridas é uma decisão sensível e democrática, sinal de respeito aos desejos do leitor. Se a palavra "elitista" virou palavrão nos Estados Unidos, levou pânico à campanha de Obama e inspirou Hillary Clinton a entornar shots de uísque puro para as câmeras, temos que agradecer em parte às tropas de Rupert. Voltemos então aos 8,3 editores acusados de desperdiçar o tempo do leitor do jornal fundado há 120 anos. A voz de meu interlocutor na redação do Wall Street Journal revela um certo pânico resignado. "Esperamos pelo pior", diz ele, "ninguém está seguro. Ele já trouxe o australiano Robert Thomson para o lugar do Marcus Brauchli, que era impensável. Veja como a primeira página já mudou. O conteúdo original desapareceu." O jornalista se refere à primeira página mais distinta da imprensa americana. Nenhuma pressa com manchetes. Reportagens investigativas e analíticas sobre assuntos que iam do mais mundano ao mais complexo. "Basicamente", ele continua, "nós fazíamos conteúdo de revista num jornal diário. Nós eramos os anti-New York Times, com a segunda maior circulação do país." (a primeira é do USA Today). O sonho de Rupert é dar uma lição no seu alvo novaiorquino favorito, a família Sulzberger, que controla o New York Times. Arthur "Punch" Sulzberger aparece regularmente numa foto retocada com a marca de um soco no olho no tablóide New York Post, editado sob a interferência regular do proprietário Rupert. É possível sofrer de personalidade múltipla em jornalismo? Por mais que Rupert seja astuto o suficiente para discriminar entre produtos completamente diferentes, como ignorar os desígnios do patrão único, promotor de baixarias que vão se superando no jornalismo do Post e da rede de TV Fox? Em novembro de 2006, sua editora, HarperCollins, só cancelou a publicação do livro If I Did It, em que O. J. Simpson descrevia em detalhes o assassinato da mulher pelo qual foi absolvido em tecnicalidades, depois que a gritaria pública tornou o lançamento um mau negócio, com o potencial de contaminar desnecessariamente a News Corporation. Mas o mesmo jornalista que descreve seu novo patrão como o Grande Satã admite que o ancien régime, da famila Bancroft, assustava pela incompetência que fez despencar o valor da companhia Dow Jones, proprietária do Wall Street Journal. Rupert Murdoch é um realista, e uma prova é que, ao consumar a compra da Dow Jones, ele disse que ia liberar de graça o conteúdo do Wall Street Journal online. Constatou que o site dá lucro, voltou atrás e pensa em subir o preço do acesso. Ele é visto como um salvador, mas também como o calculista que não hesitará em sacrificar qualquer compromisso editorial - como quando baniu a BBC de seu sistema de satélite na Ásia para agradar aos líderes comunistas chineses, em 1994. Essa combinação de empresário global e microgerente do conteúdo de informação, com tentáculos em distribuição em todo o planeta, torna Rupert um cabo eleitoral frankensteiniano. Se cuida, Barack.

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