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O bafo dos inconformados

Por trás da chiadeira com a lei seca está o laissez-faire da barbárie, que confunde respeito à vida com repressão

Por Mac Margolis
Atualização:

A noite era de céu limpo e temperatura amena. Uma noite dessas abençoadas de inverno carioca que pedia um bom papo, batizado de chope ou vinho tinto. Para uma quarta-feira, a pizzaria de Ipanema estava até cheia, mas a conversa era irreconhecível. "Vai de vinho ou chope?", perguntou uma amiga. "Água", respondi. "Ressaca?" "Não, medo. Da polícia." "Ih, é!", disse ela. "Está dirigindo. Qual é o limite mesmo, é meio chope?" "Chope nenhum", corrigiu outro amigo, um advogado. "Nem Listerine na boca pode." "Água, então", falamos em coro. "Com gás." Bem-vindo à nova noite carioca, bela, melindrosa e seca. A julgar pelo noticiário, desconfio que a conversa tenha sido parecida País afora. Desde que se baixou a lei seca, há um bafo de incerteza e inconformidade pairando sobre as boas mesas do Brasil. Como se comportar agora? Beber é o novo tabu? Destiladores, baristas e a grã-boemia estão unidos na revolta contra o que seria mais um espasmo repressivo do "Estado babá", que, segundo os protestos, não mede forças para ditar as boas maneiras mesmo que pisque o olho para assaltantes ou banqueiros bandidos. Claro, ninguém chancela um bêbado ao volante. Mas forçar os bons cidadãos a pagar preventivamente pelo deslize de alguns fora-da-lei, ou sacrificar o direito coletivo de ir e vir ou de beber moderadamente, é autoritarismo. "No Brasil, esse exagero simplesmente repete o espetáculo de violência de um Estado fraco, que encena uma força desproporcional a seus recursos simplesmente para atemorizar", como escreveu José Arthur Giannotti. Não falta quem aposte na revogação da lei. "Será que essa lei vai pegar?" Já conhecemos esse coro. Foi assim no caso do uso obrigatório do cinto de segurança, que insuflou de juristas a filósofos, mas sobre o qual não se ouve mais nada. É a revolta contra o pardal eletrônico, aquele que automaticamente flagra e multa os motoristas em excesso de velocidade e continua provocando libelos e liminares. Será com certeza assim quando as autoridades finalmente resolvam fazer valer a lei de respeitar a faixa de pedestre, que, fora Brasília, é tida como um costume exótico. Podemos chamá-lo de chiado do processo civilizatório que para mim, um americano de nascença e brasileiro por opção, é de muito bom tom. E já vem tarde. A mesma inconformidade eu vi tomar conta dos Estados Unidos nos anos 70, em meio ao primeiro choque do petróleo, quando se baixou o limite de velocidade de 100 km/h para 80 km/h. A mera idéia de haver limite de velocidade feria a sensibilidade dos norte-americanos, para quem a estrada sempre foi sinônimo de romper modos, fronteiras e limites. Agora, é sinônimo de cadeia. Na Inglaterra há mais de 2 mil câmeras vigiando as estradas e nem por isso existe uma enxurrada de protestos e processos. Por outro lado, a inconformidade não é só brasileira. Atualmente, a obrigatoriedade do cinto e a lei seca estão balançando o Oriente Médio, unindo árabes e judeus no desgosto à autoridade policial. Parece piada, mas até os iraquianos, entre um atentado e outro, encontram tempo para se queixar da nova multa de 15 mil dinares (R$ 20) aplicada aos que dirigem sem cinto. Por trás da inconformidade há a turma da conveniência, acostumada ao laissez-faire da barbárie, e que confunde respeito à vida alheia com cerceamento de liberdade. A ela não falta amparo graúdo. Pouco tempo atrás, no bairro carioca de Urca, onde moro, um deputado estadual alçou uma bandeira convocando eleitores a apoiar sua iniciativa para retirar o pardal eletrônico no cruzamento em frente ao Instituto Benjamin Constant - órgão que atende os cegos. Neoluditas, se insurgem contra as máquinas. Para um promotor de Justiça do Rio, o pardal eletrônico é falho, por não ser sujeito a aferição crônica, além de ferir o direito de defesa prévia, já que dispensa o guarda para distribuir multa. Só falta alegar que a foto batida do velocista na hora da infração também não vale por ser digital e assim, passível de manipulação, quem sabe, por algum fanático do Detran armado de Photoshop. Questionar os excessos do poder central pode ser salutar. Enfim, no Brasil, onde tudo é sobretamanho, inclusive o entusiasmo oficial para planos de reengenharia social, toda cautela é pouca. (Que outra sociedade troca toda sua moeda praticamente da noite para o dia ou obriga todos os aposentados a se recadastrarem sob pena de perder seus benefícios?) Como também há o perigo de se aplicar a lei certa por mãos erradas, como por exemplo uma polícia que enxerga na blitz uma oportunidade de arrecadação. Aliás, impressiona a presença ostensiva de viaturas policiais espalhadas pelas ruas do Rio nestes dias inaugurais de lei seca - um ganho colateral, digamos, numa cidade repentinamente abstêmia, mas ainda insegura. Só que mudanças de comportamento não vêm como brinde num canudo universitário ou emblema da democracia. Tem de haver disciplina também. Está certa a idéia de que apenas os culpados de dirigir bêbado devem responder às leis penais, mas quem é o motorista que, após umas e outras, se acha incapaz ao volante? Nos anos 1950, quando os primeiros motoristas holandeses foram apanhados em alta velocidade pelas lentes das câmeras Gatso de monitoramento, disseram que as máquinas estavam mentindo. Só depois de ver meu carro imobilizado com uma enorme trava amarela da polícia de trânsito de Boston me convenci do bom senso de estacionar corretamente. Algema também educa. O problema é que a magna tolerância acaba criando a inebriante sensação de imortalidade. Quando cheguei ao Rio, anos atrás, fui visitar um colega carioca no Parque Guinle, área nobre da cidade. Não havia onde estacionar por perto e, meio envergonhado, subi parcialmente no meio-fio, provocando gozação do meu colega. "Você está com apenas duas rodas na calçada", me disse. "Ainda não chegou totalmente ao Rio." Com o tempo, acabei chegando por completo, com todas as quatro rodas em cima da calçada, mais um perfeito idiota do trânsito carioca. Não faço mais e não posso afirmar que foi por súbita tomada de consciência cívica. Foi canetada mesmo. É que, com a disciplina, os hábitos começaram a mudar. Parcialmente, talvez (falta ainda baixar duas rodas), mas é um bom começo. Vale a pena brindá-lo, mas só com motorista designado. *Mac Margolis é correspondente da revista Newsweek no Brasil

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