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O Bolsa-Família e o crediário de geladeiras e lavadoras

Programa se rende ao consumismo e desvirtua sua proposta de inclusão social

Por José de Souza Martins
Atualização:

Na versão do governo do presidente Luiz Inácio, o programa Bolsa-Família visa famílias extremamente pobres (as que têm renda per capita de até R$ 60 por mês) e famílias pobres (as que têm renda per capita entre R$ 60,01 e R$ 120 por mês). Seu objetivo é combater a fome e promover a segurança alimentar e nutricional, combater a pobreza e promover o acesso aos serviços públicos, em especial, saúde, educação, segurança alimentar e assistência social. É um programa governamental no âmbito do chamado Fome Zero, que hoje alcança 11,1 milhões de famílias, cerca de um terço do povo brasileiro. Nestes dias, o Ministério do Desenvolvimento Social e do Combate à Fome anunciou que Dona Graciane, de Minas Gerais, com o dinheiro da bolsa comprou uma máquina de lavar roupa e que Dona Rosineide, de Alagoas, comprou sua primeira geladeira. A primeira, além de lavar a roupa da própria família, está lavando roupa pra fora, para ganhar uns trocados e completar o pagamento das prestações da máquina. O que mostra que, com muito pouco, é possível estimular a imaginação empreendedora dos brasileiros. A segunda justifica a reorientação de curso da bolsa para poder encher a geladeira de alimentos e conservá-los, o que facilita seu trabalho doméstico. No mesmo anúncio, o Ministério do Desenvolvimento Social menciona o crescimento de redes de lojas de eletrodomésticos no Nordeste e nas áreas mais beneficiadas pelos bilhões de reais do Bolsa-Família, citando-as nominalmente. Desse modo reconhece que o dinheiro é capturado por esquemas de concentração da riqueza. No fundo, o Bolsa-Família aderiu ao consumismo neoliberal para o qual o PT e o governo se propõem como alternativa. Esse programa, na verdade, barateia o trabalho de um não desprezível contingente da força de trabalho. Subsidia, portanto, quem não precisa de subsídio. É programa necessário, mas que promove exclusão social, porque confina no conformismo da subvenção, e não promove senão a inclusão temporária e ilusória. Os casos da lavadora e da geladeira são anomalias só aparentes a contrariar o programa. Evidenciam seus aspectos ocultos. Como na reforma agrária deste governo, em que uma proporção não pequena de assentados aluga para terceiros a terra recebida ou mesmo a vende, ilegalmente, convertendo terra de trabalho em renda da terra, ganho especulativo à custa de um programa social do Estado. Assentados que passam a viver de renda como qualquer latifundiário. Em sua origem, no Bolsa-Escola, o programa visava assegurar que as famílias mandariam os filhos para a escola, em vez de mandá-los para o trabalho. Substituía míseros ganhos de crianças pela bolsa complementar de renda, de modo que seu trabalho se tornasse desnecessário. O atual governo quis fazer desse programa meio de combate à pobreza, o que é outra coisa. Pobreza se combate com desenvolvimento econômico e social, emprego e salário. Os próprios dados do MDS mostram que a freqüência escolar dos filhos das famílias beneficiadas pela bolsa é apenas ligeiramente superior à dos filhos das não beneficiadas. Com um indicador grave: menor freqüência escolar dos meninos em relação às meninas beneficiadas. Esse é um indício de que há pais que recebem a bolsa, mas continuam mandando os filhos menores para o trabalho. Não podem abrir mão da bolsa, mas não têm como renunciar às aspirações de consumo que contrariam as metas sociais do programa. O Fome Zero e os programas em nome dele propostos pelo governo, como o Bolsa-Família, baseiam-se no pressuposto de que a sociedade brasileira é uma sociedade fraturada entre os socialmente incluídos e os excluídos. São programas, portanto, destinados a promover a inclusão social. Porém, inclusão numa fantasiosa sociedade em que a pobreza é mérito e o consumo é demérito, em que as únicas carências a merecer favorecimentos são relativas ao comer e não propriamente ao ter e ao ser. É muito pobre a concepção moralista da sociedade contemporânea, porque ignora que as necessidades sociais mudam no correr da história, as estruturas de consumo se modificam e mesmo as prioridades mudam de lugar. A fome hoje está alargada e impregnada de itens não alimentares, como os dois mencionados, as tvs em míseros barracos das favelas e, nelas, até motos e automóveis disputando barracos como garagem. Ora, segundo a ideologia do principal aliado rural do governo, o MST, esses bilhões deveriam estimular o mercado dos produtos da pequena agricultura familiar, saciar a fome de quem produz e de quem consome, criar fluxos locais e regionais de renda e emprego e promover um círculo virtuoso, de tipo keynesiano, capaz de sustentar materialmente, e bem, a legitimidade da supostamente alternativa econômica que representam e da reforma agrária que advogam. Além disso, o programa não enfrenta o potencial de criação econômica de sua imensa clientela. Iniciativas de empreendedorismo familiar vêm do capital social representado pelas tradições e conhecimentos desses setores da população, encurralados pela vitalidade da economia de grande escala no meio da historicamente plácida sociedade de trabalhadores dos ofícios. São os pré-proletários de uma economia da pobreza que nem por isso deixa de responder por uma parte não desprezível da economia agrícola, dos serviços e da produção artesanal. Equívoco porque, em vez da criação de um programa que fizesse justiça aos marginalizados da história, criando as condições econômicas e políticas que lhes permitissem mobilizar sua rica cultura como ponto de partida de integração nas possibilidades da economia moderna, preferiu o governo a forma social e politicamente retrógrada do neoclientelismo e a economicamente atrasada da esmola certa. Vacila entre o potencial de inovação econômica dos ardidos pretendentes à reforma agrária e a passividade doméstica dos dóceis clientes do Bolsa-Família. *José de Souza Martins é sociólogo e professor da Faculdade de Filosofia da USP

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