O botafogo de Dostoievski e outros intelectuais na terrinha

João Moreira Salles foi quem mais entendeu a alma botafoguense

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Por Sérgio Augusto
Atualização:
Time do Botafogo retratado pelo pintor Rubens Gerchman nos anos 1970. Imagem:Rubens Gerchman 

"Com base em que Paulo Mendes Campos deduziu que Dostoievski era botafoguense?”, cobrou-me um leitor depois de ler um comentário sobre Dostoievski e Tolstoi que aqui fiz no sábado passado.  Bem, o poeta explicou sua idiossincrática taxonomia lítero-futebolística numa crônica para a revista Manchete com o título de O Botafogo e Eu (tem, de graça. no Portal da Crônica do Instituto Moreira Salles), publicada em agosto de 1962, poucas semanas depois do bicampeonato mundial do Brasil no Chile e a quatro meses do bicampeonato do Botafogo no certame carioca daquele ano. Torcedor do Glorioso, Paulinho se orgulhava de “partilhar defeitos e qualidades comuns” com o clube da estrela solitária.  “A mim e a ele” – escreveu –“soem acontecer sumidouros de depressão, dos quais irrompemos eventualmente para a euforia de uma tarde luminosa”. Luminosa como a tarde do último domingo, quando o Botafogo, quebrando penoso jejum, conquistou mais um campeonato, com uma rodada de antecedência.  Este título, porém, o cronista-poeta, morto há 30 anos, não pôde, hélàs!, comemorar. Mas eu, que me afastara do futebol há uns três anos, por não suportar mais a ruindade dos times e a cafonice dos atletas, não apenas do Botafogo, voltei provisoriamente às lides, mais em deferência a alvinegras glórias passadas e à memória do poeta-cronista do que por qualquer outra motivação. O que havia de comum entre Paulinho e o Fogão?  “O Botafogo, às vezes, se maltrata, como eu; é meio boêmio, como eu; tem um pé em Minas Gerais, como eu; tem um possesso, como eu; é mais surpreendente do que consequente, como eu; é um tanto tantã (que nem eu); e a insígnia de meu coração é também uma estrela solitária”, alinhou o poeta. O aludido “possesso” era o atacante Amarildo, apelido que lhe deu Nelson Rodrigues durante a Copa do Chile, pensando, é claro, nos demônios de Dostoievski.  Segundo Paulinho, também seriam botafoguenses Michelangelo, Stendhal, Bach e Rimbaud. Influenciado pela capa de uma publicação que em 1968 incrustou Orson Welles num escudo do Botafogo, ousei acrescentar o cineasta àquela formidável torcida imaginária. Pelos triunfos e revezes que sofreu na carreira, pelas tragédias que protagonizou, no palco, na tela e na vida real, Welles, convenhamos, não podia torcer por outro clube carioca.  E não torceu, aderindo ao Glorioso ao passar seis meses no Brasil em 1942, para filmar o malfadado É Tudo Verdade.  Soube da história por meu amigo Nelson Paes Leme, que a ouviu de seu pai, Luiz, um dos fundadores da UNE, que, com outros jovens ligados à alvinegra família Aranha, convenceu Welles a “virar Botafogo”.  A cabala consumou seu objetivo na Festa da Mocidade, uma espécie de Congresso de Ibiúna do Estado Novo, realizada no legendário Calabouço, vizinho ao Aeroporto Santos Dumont. Do resto da catequese deve ter-se ocupado o também poeta, boêmio e botafoguense Vinicius de Moraes, inseparável cicerone de Welles em sua estada no Rio.  Vinicius era um dos craques do imaginário time que sublimei, com a camisa do Botafogo, para um livro sobre o Fogão, publicado há quase 20 anos. Era um ‘dream team’ formado por artistas e intelectuais que – eis a diferença – de fato torceram ou ainda torcem pelo alvinegro. No gol, Augusto Frederico Schmidt; na zaga, ao lado de Vinicius, outro bardo, Olavo Bilac; na intermediária, Paulo Mendes Campos, Fernando Sabino e Clarice Lispector; no ataque, Glauber Rocha, Otto Lara Resende, Luís Fernando Verissimo, Ivan Lessa e o professor Antonio Candido.  No banco, mais um punhado de craques. Técnico: João Saldanha. Comissão técnica: Armando Nogueira e Sandro Moreira. Agachadinho na frente do brioso esquadrão, no desenho que o alvinegro Aroeira fez para o livro, o mascote da equipe, João Moreira Salles, que, diga-se, entende o Botafogo e sua transcendência melhor do que ninguém.

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