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O Brasil não entende São Paulo

A idéia de SP como a sanguessuga da Federação cai por terra diante do domínio das oligarquias

Por Marco Antonio Villa
Atualização:

A relação de São Paulo com o Brasil, desde o final do Império até hoje, é marcada pela tensão entre a modernidade e o conservadorismo. Em diversos momentos o panorama paulista foi uma espécie de antecipação do que viria a ocorrer, anos depois, na cena nacional. Essa "precocidade" sempre foi mal recebida pelas elites retrógradas - existentes, inclusive, em São Paulo. Na disputa pelo espaço político nacional é rotineira uma espécie de mal-estar com São Paulo, acusado de "imperialista" e de exercer uma hegemonia que seria danosa ao Brasil. O mais constante repetidor dessas ladainhas, no momento, é o deputado Ciro Gomes, que utilizará dessas "teses" até a exaustão durante a campanha presidencial de 2010. Esse desencontro tem uma longa história. Um provável começo pode ter sido a política "café com leite". A expressão nasceu no debate político, mas invadiu a historiografia e se consagrou como conceito definidor de um momento histórico. Em qualquer manual, o "conceito" está presente: nomeia os anos 1889-1930 (alguns preferem 1894-1930, excluindo os dois primeiros governos militares). E tenta explicar uma espécie de condomínio político paulista-mineiro durante a República Velha. Nada mais equivocado. Se os três primeiros presidentes civis eram paulistas, isso se deveu ao fato de que o único partido republicano efetivamente organizado na época da propaganda (1870-1889) estava em São Paulo. Nas outras províncias - excetuando-se o Rio Grande do Sul e a Corte - era desprezível o número de republicanos. Quando se consolidou a ordem republicana, o próximo presidente oriundo de São Paulo (e, como é sabido, não era paulista) foi Washington Luís, 20 anos depois da saída de Rodrigues Alves da Presidência da República. Se o domínio paulista fosse tão inconteste, não teria havido um interregno tão longo. Tudo indica que a expressão "política café com leite" tenha se fixado no debate político após o Pacto de Ouro Fino, em 1913, quando as direções dos Partidos Republicanos Paulista e Mineiro estabeleceram um acordo sobre as sucessões presidenciais de 1914 e 1918, isso depois da cisão na sucessão de 1910, quando a ampla maioria do PRP apoiou Rui Barbosa (mas houve uma dissidência liderada por Rodolfo Miranda, que fez a campanha do candidato situacionista), enquanto o PRM apoiou Hermes da Fonseca, que tinha como candidato à vice-presidência o mineiro Venceslau Braz. Durante toda a República Velha o debate político em São Paulo foi intenso. Desde 1891 formaram-se diversas dissidências no PRP, tanto na disputa estadual como na nacional. Nem sempre um político de expressão nacional conseguia manter sua presença no Estado. Um bom exemplo foi o fracasso de Campos Salles, presidente da República (1898-1902), em retornar ao governo do Estado em 1907, quando foi derrotado por Albuquerque Lins (em tempo, natural de Alagoas). Ainda na esfera partidária vale rememorar a importância da fundação, em 1926, do Partido Democrático e de seu papel na defesa do voto secreto - bandeira revolucionária no período, quando as eleições eram marcadas pelas fraudes e atas falsas. Recorde-se também o papel inconteste do PD na formação da Aliança Liberal, que apoiou Getúlio Vargas em 1930. Falando em Vargas, não é possível esquecer o comício realizado em janeiro de 1930, uma das maiores manifestações de massa da história da cidade. E por que não citar as consagradoras votações que ele recebeu em São Paulo nas eleições de 1945 e 1950? E os vários ministros paulistas que fizeram parte tanto do primeiro, como do segundo governo? Onde está a resistência de São Paulo ao varguismo? São Paulo foi palco das grandes greves ocorridas na República Velha. E foram tantas. Durante o populismo, as maiores greves também ocorreram aqui (1953 e 1957). Esses movimentos foram essenciais para as conquistas trabalhistas do século 20. Já que estamos neste terreno, vale lembrar as greves do ABC, já no final da ditadura militar, e seu papel renovador no sindicalismo brasileiro. Não deve ser esquecido que a principal seção estadual do MDB, na luta contra a ditadura militar, era a paulista. Quem não se lembra dos dois comícios das Diretas Já, em janeiro e abril de 1984, que deram início e término à célebre campanha? Não é acidental que tanto o PT como o PSDB tenham na cidade de São Paulo suas principais lideranças, produto da disputa política que aqui existe e da melhor organização partidária. Não é "imperialismo" que os três candidatos à direção nacional do PT atuem politicamente em São Paulo, assim como os dois últimos presidentes da República terem vindo daqui, mesmo não sendo paulistas, como é sabido. Se o protagonismo político é evidente - e quando não ocorreu, como durante o governo Sarney, foi extremamente nefasto ao País -, no campo cultural a relação de São Paulo com o Brasil é extremamente contraditória. Destacar a Semana de Arte Moderna é uma obviedade, concordo, mas na ocasião o escritor mais popular do país era o pífio Benjamin Costallat. Se nos anos 40 a literatura nacional era dominada pelo regionalismo, aqui Mário Donato escreveu o inquietante Presença de Anita (1948), em uma clara ruptura com os modelos vigentes. Enquanto o Cinema Novo tinha no sertão a sua matriz, na paulicéia desvairada esta se encontrava no mundo urbano, como em São Paulo S/A, A margem ou O Bandido da Luz Vermelha. Florestan Fernandes escreveu que São Paulo foi a primeira cidade autenticamente burguesa do Brasil. Brilhante definição. Aqui chegaram milhões de imigrantes e migrantes. Aqui - apesar de todas as dificuldades - ocorreu (e ocorre) uma convivência de contrários (com tensão, evidentemente), típica da sociedade moderna; não houve, tal qual no Rio Grande do Sul, uma relação de hostilidade ao "estrangeiro". Basta recordar a Constituição gaúcha de 1891, que só admitia como governador um rio-grandense nato (artigo 12). No campo da pesquisa histórica, um caminho para enfrentar os dilemas da relação entre São Paulo e Brasil é o de revitalizar a discussão, sem temer o debate, retirando o pó que recobre há décadas os estudos históricos paulistas, sem regionalismo barato, contudo sem receio ou vergonha de tratar da história da cidade. Politicamente, é preciso retirar o tema do oportunismo eleitoral. São Paulo não funciona como sanguessuga da Federação. É óbvio que cabe às áreas mais avançadas ajudar o desenvolvimento das mais atrasadas. Dessa forma inverte-se o problema: a questão é romper o domínio das oligarquias, especialmente a nordestina, do aparelho de Estado. *Marco Antonio Villa é historiador, professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de São Carlos. É organizador da Coleção Paulista (Imprensa Oficial e Fundap), que vem relançando importantes obras referentes à história de São Paulo, como A Província de São Paulo (de Joaquim Floriano, 1875)

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