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O brasileiro que inventou a máquina de escrever

Em livro ainda inédito, pesquisador revela a saga do padre paraibano Francisco João de Azevedo, precursor da máquina de escrever no século 19. Apresentada mais de uma década antes da primeira Remington, a invenção do religioso maçom poderia ter sido símbolo do progresso brasileiro, mas acabou esquecida num canto da História

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Por Luciana Garbin
Atualização:

Escrever dava trabalho há dois séculos. A toda hora, era preciso molhar a pena no tinteiro ou mudar de lápis. Muitas vezes nem os taquígrafos, que se gabavam de registrar sinais no papel com a mesma velocidade da fala, conseguiam decifrar suas anotações. Não por acaso criar uma máquina de escrever era sonho de vários inventores no século 19. Oficialmente, os pioneiros foram americanos. Mas, anos antes de a Remington lançar no mercado seu primeiro modelo, um padre paraibano já tinha descoberto como mecanizar a escrita. Sua trajetória é resgatada no livro Francisco João de Azevedo e a Invenção da Máquina de Escrever (Editora Tamanduá_Arte), de Rodrigo Moura Visoni.

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A, B, C, D, E, F, I, L, l, O, P, R, r, s, T, (til). A máquina criada pelo religioso tinha 16 teclas, que, combinadas, davam origem aos demais sinais gráficos. Um pedal servia para mudar de linha. Parecida com um piano, ela causou admiração desde a primeira vez em que foi exposta, em novembro de 1861, no Recife.

Chamada de máquina taquigráfica, foi instalada na primeira das cinco salas da Exposição dos Produtos Naturais, Agrícolas e Industriais das Províncias de Pernambuco, Alagoas, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará, assim como outros cerca de mil objetos, enviados por aproximadamente 200 expositores.

O evento foi de 16 a 22 de novembro. Três dias depois, Azevedo embarcou com seu invento na corveta a vapor Paraense rumo ao Rio de Janeiro. Seu plano era participar da I Exposição Nacional. Chegou em 8 de dezembro, seis dias após a abertura da mostra na Escola Central, no bairro da Glória, e recebeu elogios da imprensa local.

“A invenção é, a nosso ver, extremamente engenhosa”, registrou um repórter do Jornal do Commercio em 16 de fevereiro de 1862. “Mas, como facilmente se depreende, só a prática é que poderá demonstrar a sua eficácia para o fim a que o autor quis atingir, isto é, maior rapidez do que aquela que se tem conseguido alcançar pelos sistemas conhecidos de taquigrafia que os nossos práticos empregam no apanhamento dos debates dos corpos legislativos, dos tribunais judiciários etc.”

Em 14 de março de 1862, dos 1.136 participantes da exposição, que exibiram 9.962 objetos, só nove tiveram a honra de receber uma medalha das mãos do imperador d. Pedro II. Azevedo foi um deles. E ganhou logo uma de ouro.

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Visoni conta que promover exposições agrícolas e industriais nas províncias foi uma estratégia imperial para mostrar produtos típicos. Para turbinar exportações, outra medida foi enviar os melhores à Exposição Universal de Londres de 1862. A máquina taquigráfica foi um dos itens despachados à capital inglesa. Sem dinheiro, o padre Azevedo não pôde ir junto. Como ninguém sabia operar a engenhoca, ela permaneceu esquecida numa parte da mostra.

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“A edição de 3 de julho de 1862 do Diário de Pernambuco traz relato de um visitante da II Exposição Universal de Londres”, relata Visoni. Dizia o seguinte: “Fui ao palácio da exposição universal e nele tenho estado: dizer-lhe o que é ser-me-ia impossível, à vista da multiplicidade, diversidade e riqueza dos objetos expostos (...) A máquina do padre Azevedo ali se acha; mas não funciona porque ninguém sabe de seu maquinismo”.

“Curiosamente, embora tenha participado da exposição londrina, o piano taquigráfico do padre Azevedo não consta do Catálogo dos Produtos Nacionais e Industriais Remetidos para a Exposição Universal de Londres, publicado em 1862. Uma falha grave”, escreve Visoni no livro.

Maçom. A essa época, Azevedo já estava perto dos 48 anos. E colecionava batalhas desde a infância. Nascido em 1814, ficou órfão de pai ainda menino. Amigos do falecido custearam sua educação e, aos 21, ele entrou no Seminário de Olinda. Membro da Maçonaria, foi, além de religioso e inventor, artista e professor de várias disciplinas – do francês ao latim, da álgebra à geometria, do desenho à aritmética. Também se aventurou pela pintura, pela impressão e pelo jornalismo – redigiu, por exemplo, o semanário O Phil’artista.

Aos 30 anos, em dezembro de 1844, o padre maçom entregou o projeto de sua máquina a Luís Aleixo Boulanger, professor de caligrafia de d. Pedro II, em passagem pelo Recife. Segundo Visoni, “Boulanger achou a invenção tão engenhosa e de fácil execução que, ao voltar à Corte, no Rio de Janeiro, falou com o imperador e o ministro José Carlos Pereira de Almeida Torres, II Visconde de Macaé”. “Aparentemente, não foi muito convincente pois nem o imperador nem o ministro tomaram, ao que se saiba, medida a respeito.”

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O sucesso do aparelho 20 anos depois na exposição do Rio deu nova esperança ao religioso. Em 13 de abril de 1864, a Câmara dos Deputados recebeu emenda que propunha consignar 3 contos de réis à “máquina taquigráfica inventada pelo padre Francisco João de Azevedo na província de Pernambuco”. A proposta, porém, não foi aprovada.

Azevedo então já se tornara professor substituto de aritmética e geometria na Faculdade de Direito do Recife, membro honorário do Instituto Histórico e Filosófico de Pernambuco e professor da Sociedade dos Artistas Mecânicos e Liberais do Estado. Também tinha ganhado medalha de prata em 1866 na Exposição dos Produtos Agrícolas, Industriais e Obras d’Arte de Pernambuco por outro invento: o elipsógrafo (instrumento que desenha elipses, usado para projetar plantas baixas, por exemplo).

Sem abandonar a ideia de industrializar sua máquina taquigráfica, anos depois ele pediu 4 contos de réis à Assembleia Provincial de Pernambuco. O artigo 31 da Lei Orçamentária 1.061, de 13 de junho de 1872, dispôs: “Fica o presidente da Província autorizado a mandar adiantar ao padre Francisco João de Azevedo a quantia de 4:000$ mediante fiança, para aperfeiçoamento e construção das máquinas taquigráficas de sua invenção; ficando obrigado, para indenizar este empréstimo, a apanhar debates desta assembleia durante um ano, que começará a correr depois que findar o contrato feito ultimamente com Carlos Ernesto de Mesquita Falcão.”

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Quase três anos depois, em maio de 1875, o padre informou à Comissão de Fazenda e Orçamento que ainda não havia visto a cor dos 4 contos de réis. Quatro meses mais tarde, relatou em carta ao Jornal do Recife a frustração por não poder industrializar seus inventos. Além do aparelho para escrever, mencionou um carro movido a energia eólica e um barco a energia marítima.

A partir daí, sua saúde se deteriorou. Em agosto de 1879, mudo e paralisado do lado direito, foi se tratar em João Pessoa. Portaria da Presidência da República lhe deu três meses de licença. Em 6 de novembro, obteve mais um ano. Morreu em 26 de julho de 1880, aos 66 anos, sem dinheiro nem apoio para suas invenções. A última espremia cana-de-açúcar usando menos energia.

Pioneiro. De acordo com o escritor, além do religioso, pelo menos um outro brasileiro na época tentou desenvolver máquinas de escrever. Foi o advogado Jesuíno Antônio Ferreira de Almeida. Em 24 de julho de 1867, ele demonstrou com sucesso o funcionamento de um protótipo ao então presidente da província de São Paulo, José Tavares Bastos. Mas tampouco conseguiu industrializá-lo. No mesmo ano, buscou ajuda na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro para estabelecer no Brasil uma oficina de máquinas de escrever. Pediu 12 contos de réis. Embora o empréstimo tenha sido incluído no projeto de lei n.º 462, de 19 de dezembro de 1868, o então presidente da província, Benevenuto Augusto Magalhães Taques, alegou “não ser conveniente aplicar à indústria particular o produto dos impostos”.

Há 17 anos pesquisando inventores brasileiros, Visoni credita o desperdício e a falta de reconhecimento de feitos nacionais a vários fatores. “O primeiro é que o inventor brasileiro com frequência não se resguarda registrando seus inventos no Instituto Nacional de Propriedade Industrial, até porque o próprio processo de patenteamento costuma ser lento e oneroso”, explica. Outra razão, segundo o estudioso, é que raramente o inventor tem dinheiro e tino comercial para industrializar os próprios inventos e, quando consegue que algum empresário invista na nova tecnologia, é comum ser ludibriado pelo sócio, que não lhe paga os devidos royalties. Nesses casos, a única solução é recorrer a advogados especialistas em propriedade industrial, cujos serviços não são baratos. Para piorar, os processos podem se prolongar por décadas. “Tudo, enfim, desfavorece o reconhecimento e o sucesso dos inventores nacionais”, resume Visoni.

O projeto do livro Francisco João de Azevedo e a Invenção da Máquina de Escrever já foi aprovado pela Lei Rouanet e está à espera de patrocínio para ser publicado no ano que vem.

PRIMEIRO MODELO AMERICANO VENDEU CERCA DE 400 UNIDADES 

A primeira “máquina artificial ou método para impressão ou transcrição das letras, singular e progressivamente, uma após a outra, como na escrita, de forma que todos os escritos, sejam quais forem, podem ser registrados em papel ou pergaminho tão clara e exatamente que não podem ser distinguidos da impressão” foi patenteada na Inglaterra em 1714 por Henry Mill. A partir de 1850, cerca de 20 pessoas tentaram, sem sucesso, desenvolver aparelhos pequenos, práticos e baratos nos EUA, Inglaterra e França. Em 1868, o tipógrafo americano Christopher Sholes e dois colegas – Carlos Glidden e Samuel Soule – patentearam o invento considerado pioneiro. Glidden e Soule desistiram no meio do caminho, mas Sholes continuou, com apoio de James Densmore. Em 1873, eles assinaram contrato com a E. Remington & Sons, então produtora de armas e implementos agrícolas, para fabricar mil máquinas. O primeiro modelo só escrevia em maiúsculas. Vendeu cerca de 400 unidades. 

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“Por alguns anos, a máquina foi considerada artigo de luxo”, explica Visoni. “Só mais tarde, se tornaria conveniência e, finalmente, necessidade.” Em 1887, a Remington vendeu 14 mil exemplares. Novos fabricantes e modelos surgiram. Por fim, segundo o escritor, a máquina “acabou por revolucionar métodos comerciais, suplantar a caneta e promover a expansão dos negócios mais do que qualquer outro aparelho, antes dos computadores”, que acabaram por transformá-la em peça de museu.  O Brasil logo virou importador da novidade. A primeira máquina desembarcou no Recife em 1888, trazida pelo professor de taquigrafia Sebastião Mestrinho.

  Foto: © AS400 DB|Corbis
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