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O capitalismo no espelho

Quando tudo ia bem, a imagem devolvida era boa. Com a incerteza, ela não satisfaz ninguém

Por Felipe González
Atualização:

Um ano depois do início da crise do sistema financeiro dos Estados Unidos e rápido contágio de outras áreas centrais, continuamos sem um diagnóstico - portanto, sem tratamento. Ou então, tomando medidas que procuram conter os sucessivos sintomas, mas sem certeza quanto às causas profundas e suas conseqüências, salvo as que vão aparecendo a cada dia.   Veja também: Go home, Chicago boys! Nas crises, o impossível às vezes se torna inevitável Entre o touro e o bezerro Trata-se de uma crise estranha até para que se possa reagir com um mínimo de coerência. Por enquanto, ela acabou com a crença amplamente difundida de que o mercado resolve tudo, e sem nenhuma ajuda. Ou seja, a teoria dominante desde os anos 90 do "mercado onipotente" e seu repúdio fundamentalista à intervenção reguladora. Também mostrou que a globalização do sistema financeiro revela problemas de governança que fogem da capacidade dos poderes estabelecidos no velho Estado-Nação e nos organismos internacionais tradicionais. O desconcerto leva a União Européia a fazer o contrário do que as autoridades fazem nos Estados Unidos em matéria de política monetária, embora os problemas de inflação sejam os mesmos. Nos países ricos, a atividade econômica continua caindo e os preços resistem a baixar, com a queda ou com a alta dos juros. Na UE em geral (a Grã-Bretanha segue direção própria) há grande oposição a intervenções consideradas contrárias ao livre funcionamento do mercado. Nos Estados Unidos, vemos medidas como a estatização disfarçada de empresas que controlavam quase metade do mercado hipotecário, com uma intervenção de US$ 200 bilhões, e pedidos de mais intervenções, porque as quebras não param. Poderíamos continuar citando exemplos de medidas no mínimo diferentes para enfrentar a mesma crise. O paradoxal é que o choque do comportamento pragmático com a ideologia neoliberal ocorre no berço dessa teoria, enquanto na UE, sempre tão crítica do neoliberalismo, há uma resistência muito forte à intervenção para enfrentar a sintomatologia da crise. É verdade - quase a única verdade - que continuamos conhecendo pouco as causas profundas desta crise global e ninguém se atreve a prever seus efeitos ou duração. Houve outras anteriormente, como a deflagrada, há dez anos, pela crise financeira dos mercados emergentes, que acabou contagiando os ricos no alvorecer do novo século. Agora, ocorre o contrário. Os geradores da crise financeira são os países ricos, a começar pelos Estados Unidos. Como uma década atrás, mas em sentido contrário, há quem diga que os países emergentes estão se descolando da crise americana. Mas eu tenho a convicção, que também expressei naquela época, de que todo o sistema sofrerá o contágio e a crise terá efeitos sobre a economia real dos países emergentes, não apenas sobre a dos ricos. Há uma nova situação subjacente à crise atual, uma situação induzida por dois fatores: o aumento dos preços das matérias-primas, principalmente na área de energia; e a transferência maciça do capital (que essa evolução provocou) para os países produtores e para os que mostraram capacidade de gerar riqueza e poupança, como as novas potências emergentes (China e Índia). O chamado Ocidente desenvolvido terá de pagar no futuro o que já gastou, enquanto as zonas produtoras de energia e os grandes emergentes terão poupado o que poderão gastar ou investir nesse futuro. E em todas as partes a forte tensão inflacionária é o fator que mais preocupa. O "triunfo total" do sistema capitalista ou de mercado, com as variantes que se queira, da China ao Chile, depois da queda do modelo comunista, deixou-o sem alternativa sistêmica. Não podemos considerar como alternativa nenhuma das utopias que aparecem de vez em quando, de curta duração e pouca consistência. Estamos fazendo do mercado algo que ele não é - uma espécie de regime que vá além da economia de mercado para chegar a uma sociedade de mercado, cada vez mais global e pretensamente auto-regulada pela mão invisível. De brincadeira, mas falando sério, poderíamos dizer que o capitalismo não se contrapõe ao comunismo, mas se olha no espelho e constata que a imagem devolvida é feia e fora de controle. Durante anos, quando as coisas funcionavam globalmente bem, ainda que com muitos ajustes e desigualdades dilacerantes, os olhares no espelho eram de autocomplacência. Agora que estamos navegando na incerteza, ou com a certeza de que as coisas vão mal, a imagem refletida não satisfaz a ninguém. Se as conseqüências não fossem tão duras, até dramáticas, seria divertido contemplar um sistema triunfante que não sabe o que fazer consigo mesmo, não pode se comparar aos outros considerados piores e não consegue encontrar culpados. Mas a situação não permite que se brinque e é preciso agir. Em primeiro lugar, agir com o maior pragmatismo possível e sem perda de tempo, porque as teorias tradicionais não oferecem soluções para a nova realidade que aparece fora do script. Isso vale para os governos europeus e para a própria União Européia e seu Banco Central, porque é muito perigoso e arriscado continuar esperando, dadas as atuais taxas de juros e a falta de liquidez. Em segundo, tentar encontrar um papel a para a política com P maiúsculo, capaz de tornar mais previsível a evolução futura desse mercado global que escapa dos poderes estabelecidos na sociedade industrial. Um mercado global sem regras, ou com as da famosa "mão invisível", nos levará no futuro a outras crises, não cíclicas como dizíamos antes, mas imprevisíveis e inesperadas como a que estamos vivendo agora. Não estaria sendo incubada a próxima crise financeira, nas operações no mercado futuro com matérias-primas e alimentação com um escasso nível de consolidação? Ou seja, a famosa governança (o papel inquestionável da política) continua no âmbito local-nacional e dos organismos financeiros obsoletos do passado, enquanto os fenômenos econômicos e financeiros mais relevantes se movem no âmbito global, em total desgoverno. Além do que, a era posterior à queda do Muro de Berlim alimentou o descrédito da política como barreira ao desenvolvimento sem regras da nova era da globalização. Na situação cheia de paradoxos e contradições em que nos encontramos, paramos de pedir aos estrategistas políticos que não interfiram, não regulamentem, dêem liberdade aos mercados - e passamos a exigir que corrijam as turbulências que poderão ser geradas, mesmo que a crise, por suas causas e conseqüências, esteja além de suas competências e capacidades locais-nacionais. Para começar, precisaríamos, mais do que nunca, de uma ação no âmbito da UE e de um acordo transatlântico eficaz. Os responsáveis pela deflagração da atual situação, que já atinge dimensões globais, têm obrigação de fornecer respostas a suas regiões e ao mundo. Entretanto, nada se vê no horizonte. Isso cria mais inquietação. * Felipe González foi primeiro-ministro da Espanha e presidente do Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE). É vice-presidente da Internacional Socialista

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