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O clamor silencioso dos mortos insepultos

Por terem morrido à toa, injustamente, eles permanecem entre nós como culpa e débito da consciência coletiva

Por José de Souza Martins
Atualização:

Já é muito grande o número de mortos insepultos espalhados pelas ruas da nossa consciência. No Brasil, virou rotina morrer sem causa e antes do tempo. Não só nessa forma de extermínio que é o desastre aéreo previsível, anunciado e não evitado. Mas também nessas outras formas de eliminação de seres humanos que são a violência de rua e a bala perdida. Ou a omissão de socorro e o socorro insuficiente nas mortes e sofrimentos da medicina, para muitos, apenas disponível aquém da medicina existente e possível. Morrer à toa já é um enorme problema social. Contrapartida do matar à toa e do deixar morrer à toa, problema maior ainda porque é ele expressão da dimensão propriamente política da morte sem causa aceitável. Política porque é morte administrável, protelável, evitável. Na evitável tragédia de Congonhas, aquelas pessoas não tinham que morrer. Morreram antes da hora, uma agressão a valores fundamentais da nossa cultura e da nossa concepção da vida. Valores simbolizados nas colunas partidas que nos cemitérios indicam túmulos de pessoas que morreram jovens, que podiam e deviam ter vivido até a plenitude de seus dias. É questão política porque as providências para evitar e prevenir esses desastres estão nas mãos do Estado e nas decisões, opções e preferências do governante. Tanto no que se refere a investimentos apropriados para evitá-los, quanto no que se refere à fiscalização de serviços e equipamentos que envolvam a segurança de vidas humanas e a saúde das pessoas. Essa cultura de referência da consciência social do brasileiro, relativa aos valores essenciais da vida, foi reiteradamente violada nestes dias da tragédia de Congonhas, a começar do luto, decretado mas não respeitado nem no Planalto. Coisa de quem não é do mundo deste povo, que somos todos, não o entende nem o considera. Se não bastasse o insulto do "relaxa e goza", de semanas atrás, como conselho da ministra do Turismo às vítimas do caos aéreo, veio o ministro da Fazenda explicar que desastres como o de Congonhas são conseqüência da prosperidade. E vieram, também, o ministro assessor especial do presidente da República para Relações Exteriores e um seu auxiliar comemorar no Palácio do Planalto, com gestos obscenos, a notícia de que a causa da tragédia tenha sido defeito no avião e não algo de responsabilidade direta do próprio governo Lula, apesar da crise do transporte aéreo que se arrasta sem diagnóstico nem solução. Agregue-se a essa seqüência a manifestação inicial do ministro das Relações Institucionais de que a culpa pelo desastre não era do governo, mas do piloto, morto no acidente. No Planalto, a tragédia de Congonhas foi tratada prioritariamente como potencial desastre político para a imagem de Lula e de seu governo. Os interesses privados envolvidos na permanência de Congonhas em operação também se manifestaram com grande rapidez, em face do risco óbvio de iniciativas a eles contrárias, como a do fechamento do aeroporto. Várias justificativas foram apresentadas para minimizar o desastre e evidenciar as vantagens comerciais comparativas, para empresas e usuários, do aeroporto, que já tem uma história de desastres fatais. Desde a queda de um Convair, da Cruzeiro, em 1963, sobre uma casa da Avenida Piaçanguaba, até a tragédia desta semana. O aeroporto não é só a pista de pouso e decolagem, mas também o seu corredor aéreo, cenário potencial de desastres. Nestes dias defenderam-se, mal, o poder e o lucro, como se os seres humanos existissem para eles, como se as pessoas fossem meramente adjetivas. No âmbito do governo, ficou exposta a mentalidade cotidiana e pobre que preside a República. No âmbito dos interesses corporativos envolvidos numa questão como essa, ficou exposta a mentalidade sem travejamentos éticos, que trata a sociedade e a vida como reles matérias-primas do ganho sem limites. Mas, os mortos, quem se preocupa com eles, com as duas criancinhas que morreram no ventre das mães; com as crianças que morreram antes de conhecer a vida, de ouvir Bach, de ler um livro, de sonhar um sonho; com os pais de crianças subitamente órfãs, privadas para sempre do afago que nutre o amor e a esperança; com os idosos que lutavam por justiça e teciam com paciência o manto de sua indignação? Vai se desenhando diante de nós um cenário de genocídio por omissão. Fomos todos transformados em seres humanos descartáveis. O nosso conformismo impotente nos diz isso todos os dias, no criminoso jogo-do-bicho em que a vida foi transformada. Sérgio Perazzo, médico e psico-dramatista, autor de livros sobre o tema e especialista em vítimas de mortos insepultos, diz que é essencial a cada de um nós sepultar os nossos mortos dentro de nós. Chegou a essa conclusão depois de anos tratando úlceras e cânceres do estômago de pessoas que não conseguiram sepultar seus mortos dentro de si, sobretudo nos casos de desaparecimento súbito e definitivo de alguém de seu relacionamento. Na sociologia há muito que se distingue a morte do morrer. A morte é o instante do último suspiro, de entrega da alma a Deus, início do tenebroso transe de que falavam os antigos. Sociologicamente, porém, a morte é algo que começa antes disso, quando sua possibilidade se anuncia, e se prolonga bem além disso nos ritos pelos quais os vivos acomodam seus mortos nos procedimentos da cultura do luto, na imortalidade da alma e da memória, lenta terapia ritual que preserva nossos mortos em nosso coração e nos preserva. Tudo que se viu nestes dias foi que, além da irresponsabilidade política e econômica de abreviarem a vida dos inocentes, os que movem os cordéis da vida por meio do poder e do dinheiro se atrevem até mesmo a abreviar a morte e o sepultamento simbólico dos mortos. Mortos insepultos têm um grande poder de clamor político em sociedades como a nossa. São os mortos que permanecem como culpa e débito da consciência coletiva, os mortos da ira porque morreram injustamente. Os insepultos da nossa noite retornarão em silêncio.

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