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Coluna quinzenal do jornalista e escritor Sérgio Augusto sobre literatura

Opinião|O colapso nazista por um autor condenado pelos soviéticos

‘Tudo em Vão’, do alemão Walter Kempowski, é uma obra incontornável

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Atualização:

Nossa falta de intimidade com o alemão nos fez chegar com atraso à palavra “schadenfreude”, sintética e intraduzível maneira de descrever o prazer que nos provoca o revés de um desafeto (qualquer notícia ruim envolvendo Bolsonaro, por exemplo), mas a imensa maioria dos brasileiros ainda desconhece o significado de outro proveitoso, porque sempre atual, vocábulo teutônico: “Mitläufer”.  Mitläufer é o nosso maria-vai-com-as-outras. Ao câmbio alemão, eram aqueles cidadãos de bem que baixaram a crista e propiciaram a ascensão de Hitler, a consolidação do regime nazista, e depois se acoelharam no silêncio e no esquecimento.  Conhecemos bem a espécie. Muitos de nossos mitläufers ainda estão por aí, praguejando contra uma polarização por eles próprios plantada e adubada. 

Com discurso livre indireto, prosa interrogativa e irônica, Kempowski faz relato épico em 435 páginas Foto: Editora Ayiné

Num dos melhores livros aqui traduzidos este ano, Os Amnésicos (Ayiné), a jornalista, escritora e documentarista Géraldine Schwarz reconstitui a história de três gerações de sua família no Terceiro Reich. Ninguém é tratado como vítima da História, mas como corresponsável por ela. Leiam e imaginem um exercício de ficção similar, com o Brasil de 1964 a nossos dias como pano de fundo. W.G. Sebald acreditava que os bombardeios aliados no final da guerra (Dresden foi arrasada em fevereiro de 1945) e o consequente sentimento de humilhação nacional foram fatores decisivos para a relutância dos romancistas alemães em abordar aquele período. Ninguém o contestou. Heinrich Böll e Günter Grass ainda eram exceções à regra quando Sebald aventou sua hipótese. O grande romance sobre o bombardeio de Dresden, Matadouro 5, fora escrito pelo americano (e testemunha ocular do evento) Kurt Vonnegut Jr., mas Sebald já não vivia entre nós quando o alemão Walter Kempowski (1929-2007) lançou Tudo em Vão (DBA, 435 págs., tradução de Tito Lívio Cruz Romão), sem, infelizmente, a introdução que Jenny Erpenbeck, outra exceção mais recente, escreveu para as edições alemã e inglesa.  Relato épico do colapso nazista, descrito por um alemão que testemunhou o avanço do Exército Vermelho na adolescência (Peter Globig, alter ego de Kempowski), Tudo em Vão não arreda pé de um burgo da então Prússia Oriental, hoje parte da Polônia. No centro das ações, uma imponente fazenda invejada por todos os passantes como uma ilha de paz e segurança. A determinada altura, os passantes são substituídos por tanques e soldados russos, que atropelam fantasias e encerram a polêmica sobre qual invasor – os soviéticos ou os americanos? – traria mais vantagens à comunidade. Discurso livre indireto, prosa interrogativa e irônica (vez por outra, a expletiva “Heil, Hitler!” irrompe na narrativa), para construir seu derradeiro romance,Walter Kempowski recorreu a testemunhos de 230 nada amnésicos alemães. De um “diário coletivo” extraiu uma epopeia, simultaneamente familiar e nacional. Em vão, não foi. 

Opinião por Sérgio Augusto
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