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'O conto não é um treino para o romance', diz Maria Valéria Rezende

Vencedora do Prêmio SP de Literatura e do Jabuti lança 'A Face Serena', novo livro de contos

Por Bruna Meneguetti
Atualização:

A primeira vez que Maria Valéria Rezende publicou um livro de ficção foi de forma inusitada. Ela tinha 59 anos e nutria – ainda conservando aos 75 – o hábito de presentear seus amigos com histórias escritas por ela em zines. “Dei um desses para um amigo escritor, Frei Betto. Uns anos depois, chegou num editor e ele me telefonou, queria tudo o que eu tivesse”, recorda em entrevista ao Aliás. A partir do primeiro, vieram os outros. “É como se abrisse uma torneirinha na cabeça, você começa a ter prazer em fazer aquilo especialmente. E na medida que tem uma reação do leitor, também se sente estimulado”, explica. 

Maria Valéria Rezende durante mesa na Flip 2017 Foto: Walter Craveiro

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A Face Serena, publicado este ano pela Penalux, veio de textos achados: há escritos mais recentes e outros antigos, retrabalhados e frutos dos encontros no Clube do Conto da Paraíba, que desafia os autores a produzir narrativas breves semanalmente. O conto Requadrilha, presente no livro, é um exemplo do uso dessas inspirações, nele Rezende amplia o universo do popular poema Quadrilha, de Carlos Drummond de Andrade. 

O fio que interliga os textos é o das fases da vida. Em meio às crianças, Rezende demonstra os sentimentos ruins aflorando, como a inveja da superprotegida Danielle no conto homônimo em que vê Lila brincando e livre. Convidada para a festa da vizinha, Danielle rala de propósito o próprio joelho na parede apenas para ver “por trás dos vidros de lá, finalmente, a outra. De castigo”. 

Rezende captura bem as paixões arrebatadoras e frustradas da mocidade no conto Eclipse, um dos mais bem construídos do livro, que narra justamente a passagem da infância para a adolescência, quando o desejo aparece aos poucos no coração de Ana Clara durante brincadeiras de esconde-esconde. Há também mesclas de uma prosa poética, notáveis desde Educação, que explora as primeiras experiências sexuais: “Soube que tínhamos acabado de crescer numa noite de lua morta em que, naquela rua torta, tua porta não se abriu.” 

A ironia também é marca expressiva do livro, sendo o melhor exemplo o conto Tudo pela Beleza, em que Aurélia pensa estar sendo seguida por um admirador fotógrafo, quando, na verdade, é objeto de um concurso chamado “A beleza do feio”. Entre os assuntos abordados estão presentes a temática da fantasia, desigualdade social, escrita – como em O Crítico, sobre um homem que passa tanto tempo se preparando para ser um autor consagrado que se torna péssimo na escrita – e religião. Confira a entrevista de Rezende:

Quando começou, de fato, a escrever? Assim que aprendi a escrever, comecei a fazer meus livros. Fazia cinco exemplares e pedia para minha avó ou mãe costurar. Cresci entre escritores e distribuía ali, pela família. Vivi muito tempo em cidadezinha do interior onde não tinha livraria e nem biblioteca, quando não tinha mais o que ler eu sentava e escrevia. Também era uma maneira de tentar me pôr no lugar do outro durante meu processo de inserção em lugares onde eu fazia o trabalho de educação popular [como freira, ocupação que ainda exerce]. Então, para mim, escrever era uma coisa que um dia ia acontecer na vida de todos. Isso é uma grande vantagem porque eu nunca achei que escritor fosse nenhum ser especial. Todo mundo era, entendeu? 

Como funciona seu processo de escrita? Em geral as coisas se “eminhocam” dentro da minha cabeça. Eu não sou nada introspectiva, observo o mundo à minha volta. Para escrever eu preciso encontrar quem conta, como conta e por que conta. Muitos jovens acham que o conto é um treino para o romance, e não é. O conto não é necessariamente mais fácil, pelo contrário, porque o conto não se pode perder a linha em nenhum momento. No romance, você pode desbaratinar de vez em quando. 

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Antes de ficção, você escreveu livros de história, como uma pesquisa sobre a classe operária no Brasil. Qual a diferença entre escrever ficção e não ficção? Quando a gente escreve não ficção, tem que ter uma certeza, podemos dizer. Na ficção, se pode levantar qualquer hipótese e fazer refletir. Eu sempre escrevi nas linhas, mas as entrelinhas quem escreve é o leitor e assim eu fico sabendo tudo que está escondido. Então eu estou mais interessada nisso, percebe? De provocar as entrelinhas. Eu conto o que eu vejo e isso provoca que os outros contem o que eu não vejo.

Como missionária, você alfabetizou pessoas. Isso a influencia a buscar uma prosa mais límpida? A minha tentativa é que qualquer brasileiro alfabetizado possa ler e entender meus livros. A última coisa que quero é ser uma escritora hermética. Acho que hoje está acontecendo uma escrita da inutilidade da vida, do eu. Ultimamente há um monte de livros em que o protagonista tem uma doença rara. E eu me pergunto se isso não é uma metáfora do que o escritor gostaria que os outros achassem do que é ser escritor: “Literatura é minha maldição, eu tenho que escrever porque não consigo me livrar disso.”

Quais são os temas que acredita recorrentes, de algum modo, na sua escrita? O que sempre me interessa e o que preencheu a minha vida é, no fundo, a injustiça social. Eu sempre transitei entre meios muito diferentes. A coisa que mais me encanta é o talento do povo… Um desperdício de gente. Eu encontrei milhares de pessoas que nunca tiveram a oportunidade de desenvolver seus talentos porque são pobres e acabou. Sabe, eu estou é preocupada com aqueles em quem ninguém repara. Por trás da minha escolha de fazer um romance é como se eu quisesse dizer assim: “Gente, abri uma cortina… Olhem para isso. Olhem para isso!” *Bruna Meneguetti é jornalista, autora de 'O Céu de Clarice' (Amazon) e coautora de 'Corações de Asfalto' (Patuá) 

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