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O corpo a quem pertence Vale confrontar doping e autonomia ética do atleta, no umbral dos grandes torneios

Por HANS ULRICH GUMBRECHT É PROFESSOR , DE LITERATURA NA UNIVERSIDADE STANFORD , E AUTOR DE ELOGIO DA BELEZA ATLÉTICA e (CIA. DAS LETRAS)
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HANS ULRICH GUMBRECHT Quem poderia ser mais irreversivelmente eliminado do paraíso dos astros da mídia atlética ao qual um dia pertenceu com tanta propriedade do que Lance Armstrong, o ex-heptacampeão da Volta da França que muitos fãs especialistas em seu esporte, por vezes a contragosto, haviam considerado o maior ciclista de todos os tempos e o maior protagonista do esporte fisicamente mais exigente? No entanto, não seria completamente adequado dizer que sua passagem para a obscuridade foi um evento inscrito no ano de 2012. De fato, Armstrong apenas avançou do estágio pré-final, de estar sob suspeita mundial de ter usado substâncias e procedimentos proibidos para melhorar o desempenho, ao de certeza confirmada, ao status de vilão comprovado e atleta criminoso. Muito antes de as suspeitas se tornarem condenações oficiais, neste ano, a persona pública de Armstrong já havia sido manchada por uma série de iniciativas e reações que há muito se tornaram comuns. Esse processo começa com uma acusação pública (ou o equivalente a isso, a saber, uma forte declaração pública de suspeita) levantada contra um atleta, tipicamente contra um atleta que atingiu o auge do sucesso, de ter usado substâncias ou procedimentos para melhorar o desempenho citados em alguma lista estabelecida pelo organismo que governa seu esporte. Essa primeira medida com frequência parece ser antes uma iniciativa de ávidos caçadores de dopings individuais do que de instituições. Em reação, e como segundo passo, o atleta procura a ajuda de um advogado, o qual normalmente conseguirá obter uma interdição formal de qualquer nova sugestão de suspeita. A essa altura, porém, em terceiro lugar e independentemente de qualquer novo desdobramento, a reputação do atleta em questão já estará definitivamente arruinada e, por consequência, o desfrute dos espectadores estará prejudicado para sempre. Essa foi, exatamente, por muitos anos, a situação de Lance Armstrong - antes de ele ser oficialmente despojado de seus mais ilustres títulos. Nas últimas décadas, esse mecanismo típico se tornou cada vez mais claro, e os esforços crescentes de instituições nacionais e internacionais para livrar seus esportes do doping só tornaram seus efeitos frustrantes mais frequentes e mais inevitáveis. A sequência eternamente repetida dos três passos é o produto de três circunstâncias que, por diferentes razões, são historicamente específicas. Ela pressupõe que, em um número sempre crescente de eventos atléticos, um limite absoluto de desempenho foi alcançado (por exemplo, em algumas competições elementares de atletismo, como as corridas de curta distância) - e, por conseguinte, o número de atletas capazes de atingir esse limite esteja crescendo rapidamente. Portanto, eles precisam de um mecanismo para desconectar sua situação de um vínculo universal e, provavelmente, com maior frequência do que imaginamos, os métodos de aprimoramento ilegal ocupam essa função. Do lado da indústria farmacêutica, as possibilidades de ocultar essas substâncias e métodos parecem superar sistematicamente a possibilidade de detectar casos de abuso, impelindo assim muitas formas de práticas proibidas para zonas cada vez mais profundas de escuridão e irresponsabilidade. Nas condições atuais, porém, quantidades crescentes de advogados e jornalistas vão usar a potencial eternização da sequência acusação-e-falta-de-transparência como um recurso lucrativo. Tentando entender, historicamente, as condições de uma situação em que os esforços mais bem intencionados produzem efeitos que ameaçam prejudicar irreversivelmente o desfrute pelos espectadores de desempenhos atléticos de alto nível, podemos notar que isso remonta às origens dos esportes modernos, em torno de 1800. É dessa época a descoberta da prática humana cotidiana como um campo de contingência, isto é, um campo excluindo tanto o impossível como o necessário, tornando sistematicamente incerto e, por isso, fascinante o desfecho de qualquer tipo de competição e autocondicionamento. Isso levou rapidamente a um retorno dos esportes profissionais (o boxe na Inglaterra, por exemplo, e as corridas de cavalos na França) como eles haviam florescido na antiga cultura grega e romana e, ao mesmo tempo, à integração de maneiras inovadoras de esportes amadores como um meio de aprimoramento moral, em emergentes currículos acadêmicos (a dimensão amadora dos esportes mais tarde encontraria sua articulação mais visível no moderno movimento olímpico). Desde esses começos, a história dos esportes modernos foi acompanhada de questões sobre a propriedade do corpo do atleta: ele deve se tornar parte de processos potencialmente intermináveis de aprimoramento e autotransformação principalmente moral? O atleta deve ter o direito, individualmente, de decidir sobre os limites dessa autotransformação, ou seria uma obrigação de instituições, algo próximo da autoridade do Estado policial, impor tais limites? Hoje, podemos ver como a tendência dominante dos dois últimos séculos, isto é, confiar aos organismos que governam os esportes por meio do estabelecimento de regras impositivas, levou à situação de um impasse sistemático do qual todos estamos nos queixando. Pessoalmente, estou convencido de que o endurecimento do controle da autoridade institucional está fadado a render resultados ainda mais contraproducentes, principalmente o maior crescimento daquela zona escura habitada por práticas de melhoria de desempenho cada vez mais sofisticadas e cada vez mais irresponsáveis. A única alternativa promissora, eu sugiro, será um movimento de desregulamentação - limitada. Por "desregulamentação limitada" estou me referindo a um abandono, exclusivamente, de todas as regras específicas de esportes que estruturaram o uso de certas substâncias farmacêuticas e procedimentos médicos funcionalmente equivalentes. Em outras palavras, proponho devolver a todos os atletas os mesmos direitos de posse de seus corpos que, dentro de cada sistema legal nacional, seus concidadãos sempre tiveram. Não diferente dos debates de várias décadas atrás sobre legalizar, dentro de certos limites, intervenções médicas para interromper a gravidez, um movimento como este poderia ser o começo de uma nova era de autonomia ética para os atletas e de uma transparência sem precedente para o espectador. Lance Armstrong, a despeito de sua saída dramática que se tornou irreversível em 2012, tinha a reputação secreta de usar substâncias e procedimentos ilegais com alto grau de competência - e com incomparável sucesso (embora baseado em fraude). Meu sonho seria que, dentro de um arcabouço internacional modificado, atletas como ele, que combinam talento físico, inteligência óbvia e ambição ilimitada, tivessem de novo uma grande chance. E antes que o leitor proteste contra minha proposta provocadora, lembre que minha voz não tem nenhuma influência nas instituições esportivas internacionais. Eu realmente concedo que isso poderia ser para melhor. / TRADUÇÃO DE CELSO PACIORNIK

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