O despertar da força

Numa ponta, um garoto feliz de se reconhecer num boneco negro. Na outra, uma comissão preocupada em exigir o perdão pela escravidão

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colunista convidado
Por José de Souza Martins
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Muito engano há nas formas de classificação social das pessoas. Nos últimos tempos, ganhou importância a classificação que distingue brancos e negros, com enorme valorização, neste país de mestiços, dos supostamente negros em comparação com os supostamente brancos. Fica aí oculto que um negro, por ser negro, não deixará de ser, também, bonito, culto, inteligente e bom. Mas ninguém se lembrará disso. Nem os negros, vitimados por uma concepção branca da negritude. A cor antes do humano, era coisa de senhor de escravos em relação aos negros.

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Crianças, com seus critérios próprios, tem mais facilidade do que os adultos para compreender o verdadeiro sentido dessas classificações. É a sociedade que aos poucos as deforma, impondo-lhes rotulações sociais que expressam mando e poder, em vez de ternura e simpatia. Grande repercussão teve nestes dias que uma mãe tivesse postado na rede a foto da expressão de felicidade do filho Matias, negro, de 4 anos de idade, com o presente que escolhera numa loja, o boneco de Finn, personagem negro de Star Wars, príncipe e herói. Na controvérsia, ninguém se comoveu com o fato de que o menino agiu, simplesmente, como criança. Ele viu na personagem alguém com quem se identificou, na pauta dos valores universais que valem tanto para negros quanto para brancos. Antes de tudo, no brinquedo ele não viu o negro, viu o brinquedo e nele se viu.

Por estes dias, e na outra ponta do acontecimento do menino Matias, a Comissão da Verdade da Escravidão Negra, do Rio de Janeiro, decidiu exigir que o governo brasileiro e o governo do Estado, por lei ou decreto, pedissem perdão pela escravidão imposta aos negros no passado do País. Perdão é, certamente, o item menos relevante da cesta de débitos do Brasil em relação àqueles negros que padeceram no cativeiro. Aqueles que conheceram a infâmia do tronco e do pelourinho e a humilhação da senzala, antes que o labor do eito, pela supressão do escravismo negro, fosse libertado da chibata, tornando-o objeto de liberdade e de contrato.

O governo pede perdão: e daí? Daí que uma comissão preocupada em exigir pedido de perdão pela escravidão negra deixa de lado o essencial da questão: a própria escravidão e o que ela significa. Tivemos a escravidão indígena, abolida em 1755-1757, que era juridicamente diversa da escravidão negra, alimentada pelo suor dos pardos, como eram classificados os índios administrados e seus descendentes, coagidos à sujeição de quem os capturava e possuía. E temos, ainda, a atual escravidão por dívida, nascida no próprio bojo da abolição da escravidão negra. Ela se estende até hoje no campo e na cidade. Os que compreensivelmente querem agora reparos morais, curiosamente não se insurgem contra ela. Na escravidão dos que ainda hoje padecem a escravidão, exigir pedido de perdão sem extinguir o cativeiro é fazer troça de quem cativo é. Por acaso, acabou a luta contra a escravidão?

Quem pedirá perdão pela escravização dos índios, de que decorreu o verdadeiro genocídio que os vitimou? Quem pedirá perdão pela continuidade da servidão atual, na maioria de brancos e pardos e pelos que entre eles, por rebeldia, foram surrados e mortos? Ninguém pensou na questão maior: quem receberá o pedido e concederá o perdão? Perdão, para ser perdão, tem que ter quem o conceda. O acusado não pode perdoar a si mesmo. Seria uma farsa. O que o governo representa não é nem branco nem negro, mas os cidadãos da República. A maioria dos brancos, dos pardos e dos negros, presentes na estrutura do Estado, sequer descende de antigos senhores de escravos. O estado escravista foi o estado monárquico, devidamente punido com a proclamação da República, pela escravidão que legitimou.

De certo modo, está ocorrendo aqui a antinomia apontada por Karl Marx em relação aos judeus da Alemanha: queriam ser judeus e cidadãos alemães ao mesmo tempo, sem perceber que ser uma coisa negava a outra. Descobrindo-se tardiamente como cidadãos de uma cidadania que lhes foi negada durante quase toda a história republicana do Brasil, os negros querem ser cidadãos negros, o que tolhe a cidadania que buscam com razão. O fato de não reconhecerem o mesmo clamor e até o mesmo direito em outros cativos e, portanto, de não fazerem a crítica da escravidão porque se limitam a vê-la e a compreendê-la como mero e injusto castigo do negro, empobrece-lhes a demanda.

Quem explicará isso ao menino Matias? Segundo sua mãe, ele viu a si mesmo no boneco de Star Wars, viu o herói que podia reconhecer, o seu igual e nisso a igualdade que é o fundamento da cidadania.

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Postada a foto na internet, houve quem tentasse removê-la, sob o pretexto de que viola o padrão das redes sociais. A denúncia foi recusada. Revelou, no entanto, a mentalidade preconceituosa disseminada ao nosso redor em pequenas ações de veto e censura. Nela, o superficial prevalece sobre o essencial e ameaça todos os Matias, últimos guardiães de uma consciência simples e boa da galáxia dos inocentes.

JOSÉ DE SOUZA MARTINS É SOCIÓLOGO, MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS E AUTOR, ENTRE OUTROS, DE A POLÍTICA DO BRASIL LÚMPEN E MÍSTICO (CONTEXTO)

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