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O eclipse da verdade na vida das marionetes

De como o Senado criou uma nova sorte de criminalística: a dos impunes

Por Francisco Foot Hardman
Atualização:

Entre tantas degradações de sentidos da vida humana que a modernidade nos tem propiciado, e com maior intensidade dramática desde as catástrofes do nazi-fascismo e do stalinismo, encontra-se o mais completo anulamento, proporcional à sua maior enunciação, dos conceitos de justiça, liberdade, democracia, moral, política, entre outros. A própria idéia de verdade dissolveu-se no relativismo multiculturalista da sociedade do espetáculo e do consumo de massas. Se a razão tornou-se apenas meio instrumental para a representação pragmática do mundo, de que lugar pode o sujeito conferir a verdade objetiva de sua palavra, a não ser enredando-se nas cadeias incontornáveis do discurso tecno-burocrático do Grande Mecanismo, seja o Estado, seja a Corporação e as instituições que lhes servem? Não precisamos, entretanto, de nenhuma digressão conceitual para vislumbrarmos, no clarão dessas iluminações profanas que podem acompanhar tanto o homem comum quanto o artista e poeta contemporâneos, a poderosa Frente da Mentira que se antepõe como Muro Supersecreto ante nossa vontade cívica e consciência pública ultrajadas. Já o simbolista de raríssimo valor que foi Cruz e Sousa desenhava, na prosa poética de suas Evocações (1898), a figura desse Emparedado, não nas correntes de escravo, mas dos poderes abstratos e generalizados que a Civilização, mãe de todos os preconceitos, apunha a qualquer expressão do livre-pensamento, quando ainda, em torno a esse substantivo composto, era possível localizar tanto mundos imaginários quanto práticas reais. Não precisamos de nenhum lustre particular para saber que não existe, na forma do governo republicano, soberania absoluta de nenhuma de suas instâncias e entidades. Ou melhor: a única soberania absoluta, que substituiu à dos monarcas do ancien régime, é a do Povo. Todas as demais lhe são derivadas. Tentar impor uma decisão corporativa, duvidosíssima nas circunstâncias em que foi tomada, como incontestável, no afã de salvar as aparências e, antes disso, o voraz imposto do cheque, é não só incorrer em sofisma grosseiro mas reificar aquele reduto de venalidades e apologias dessa nova sorte de criminalística, a dos impunes. Pois agora houve quem dissesse, como Dornelles, na esteira do argumento tecnicista, que em caso de crime tributário há que recorrer aos procedimentos da Receita Federal. Mesmo argumento sempre ronda as operações pró-impunidade quando se invoca o STF como foro privilegiado para quaisquer crimes de peixes graúdos, como senadores. O fato é que essa farsa que separa a lei para os pobres da lei para os ricos e poderosos é uma das características mais perversas dessa cultura cordial da criminalidade que vai se tornando, hoje mais que no passado, traço difuso impregnante de toda a vida social. A noção de decoro parlamentar, entretanto, jamais poderia se circunscrever a um exame jurídico estrito de provas. Para isso, de fato, há Ministério Público e tribunais. Como bem assinala, entre outros, Jarbas Vasconcelos, nesse triste episódio maior afronta ao decoro tem sido a insistência do presidente do Senado em manter-se no posto e, mais que isso, apropriar-se dele como seu bunker preferencial. Mas nem essa vitória de Pirro teria alguma chance se não fosse encenada no Senado sob tutela vigilante e ativa do Planalto e se não tivesse nos Mercadantes da consciência, em decisão binária dependente de maioria absoluta, o recurso da manutenção do status quo por meio da mais covarde manobra, a da abstenção convictamente subserviente. Foram 6 abstêmios e um só salvo, e uma só Salvati, mas a barca do parlamento alto parece ter naufragado mais fundo em sua impopularidade, que nenhuma operação de bastidor parece agora poder conter, nem a dos Mares Guias. A tropa de choque fala em Renan como "herói da resistência", e ele repete a deixa. Seria o caso de testar tamanha valentia: lancem, por que não?, esse rei dos achaques abençoado pela padroeira do Círio de Nazaré, pelo líder do governo Jucá, pelo consultor ad hoc em sobrevivência política Barbalho, e pelos inamovíveis Sarneys, como candidato presidencial da base aliada, e vamos a ver como a coisa rola... O general Newton Cruz, lembram?, fez a varredura de Brasília com seus tanques às vésperas da votação das diretas-já. O diligente Tião Viana, alguém se lembrará?, estrelando drama tipo "minha vida pelo regimento" (do Senado ou das tropas?) fez a varredura do plenário azul, que ficou cinza como a alma penada desses figurantes de opereta, suplentes de suplentes da Frente da Mentira. As diretas perderam e Renan, o Renitente, safou-se. Mas quanto tempo manobras isolacionistas tão acintosas a qualquer idéia consensual de democracia, como nessas cenas de pura violentação a todos os decoros próprios a qualquer espaço público, sobrevivem, afinal? Difícil responder, e muitas vezes o desânimo sucede a indignação e a revolta. Mas é certo que, historicamente, em plena vigência das liberdades democráticas, nenhum tiranete de algibeira, mesmo que atrelado às oligarquias renovadas mais poderosas, terá tido fôlego para continuar manobrando por tanto tempo em causa própria. Mesmo que a vida do Senado, hoje automatizada na razão formalista e subjetiva dos interesses pessoais e corporativos, seja, como em um filme de Bergman, Da vida das marionetes, mero Big Brother de mediocridades, mórbida expressão de uma sociedade desarticulada. A verdade ocultou-se em eclipse quase total, e com ela algumas de nossas mais humanas e frágeis esperanças, como aquela que divisa na reforma política radical o único passo para superar-se, ao menos em parte, a crise profunda de representação que se vive não só em escala sindical como partidária, não só nacional como planetária. Só mesmo a liberdade incondicional do pensamento crítico pode, ao convertê-lo em ações determinadas, derrotar a Frente da Mentira, com todos os seus senhores, fantoches e anéis. *Francisco Foot Hardman é doutor em Filosofia e professor titular do Instituto da Linguagem da Unicamp QUARTA, 12 DE SETEMBRO O grande abstinente O principal articulador da operação para salvar o mandato de Renan Calheiros foi o senador Aloizio Mercadante. Ele admitiu ter sido a favor da abstenção: "É um gesto de quem gostaria que essa investigação fosse concluída", argumentou.

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