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O embate entre dois monólogos

Republicanos vociferam contra a cultura e invocam valores. Democratas se atêm a questões políticas que julgam essenciais. Quem fala mais alto?

Por Lee Siegel
Atualização:

Guerra de culturas, guerra de culturas! Nesta nação das novas versões - no teatro, no cinema e na política - a expressão desperta entusiasmo e promete um novo e estimulante filão literário na fascinante campanha política para a presidência. Mas a idéia da reedição de uma guerra de culturas é apenas uma expressão de forte impacto, nada mais. Sarah e Joe na arena: sob pressão de alguns direitistas, McCain escolheu uma candidate a vice de direita para acalmá-los; Obama, quando partidários de Hillary levantaram a voz, decidiu não escolher uma mulher para vice a fim de não inflamar os ânimos. Foto: Reuters Para que haja uma guerra é preciso haver dois lados dispostos a lutar. No entanto, os republicanos vociferam contra a cultura, enquanto os democratas insistem em se ater a "temas políticos" essenciais. Não se trata de uma guerra, mas de dois monólogos paralelos. Os republicanos adotam sem restrições a mesma estratégia bem-sucedida que elaboraram há mais de 25 anos. Foi quando os partidários de Reagan declararam que governo é irrelevante, até mesmo um obstáculo para a melhoria da vida social; e assim, deslocaram o centro de operações republicanas da política para a cultura. Imediatamente, os revolucionários de Reagan convidaram para sua causa a direita cristã, que estabeleceu seu universo cultural independente contra valores culturais seculares que os liberais nunca haviam sonhado pudessem estar explicitamente ameaçados. No entanto, a perspectiva cristã teve de ser amenizada e tornar-se mais abrangente. Então entrou em cena Allan Bloom. Em 1987, Bloom publicou seu best seller The Closing of the American Mind (O fechamento da mente americana), um ataque ao que considerava uma cultura popular grosseira e o "politicamente correto" destrutivo nas universidades. Erguendo a bandeira da direita cristã com suas mãos de intelectual cosmopolita, Bloom conseguiu casar a direita religiosa com os majoritariamente seculares neoconservadores. Ele começou o trabalho que foi concluído por William Bennett em sua sensacional obra The Book of Virtues (O livro das virtudes). Bloom redefiniu a cultura como "valores". Ele deu a impressão de que era inútil lutar por seus amados Grandes Livros, porque os Grandes Livros haviam sido levados à extinção por professores de esquerda enraivecidos e formas vulgares de diversão. A Cultura com C maiúsculo estava irreparavelmente perdida para o cidadão médio. Para Bloom, cultura agora significava não literatura ou arte, mas a luta pela "alma" ameaçada do americano ("alma", palavra continuamente repetida ao longo do livro). Este Armagedon secular (a batalha final entre bem e mal) estava vividamente personificado por Bloom em sua hoje notória imagem do adolescente americano introvertido que se masturba no quarto, ao som de um rock-and-roll ensurdecedor. De uma penada, Bloom mergulhou irrevogável e fertilmente a política na cultura. E definiu o sentido mais amplo da cultura como a necessidade de viver uma existência dotada de significado. Em outras palavras, valores. Como resultado de todo esse tumulto intelectual, entre as várias diferenças entre liberais e conservadores contemporâneos (as verdadeiras diferenças, não as fabricadas) uma se destaca nitidamente. Os liberais sempre acham que algo não funciona na política. Os conservadores sempre acham que há algo errado na cultura. Essas urgências conflitantes deram em geral aos conservadores uma posição de vantagem por mais de um quarto de século. Como a cultura é algo mais imediato para nós que a política abstrata e os princípios da política - e aparentemente mais confiável que o oportunismo muitas vezes fluido da política -, uma política de cultura está destinada a ser mais bem-sucedida que a mera política. Para muitos, é difícil aceitar a idéia de que a política republicana seja totalmente responsável pelos males do país. Até porque a política não é algo que se sinta. Ao contrário, essas pessoas culpam a cultura do egoísmo e da irresponsabilidade pelo agravamento da doença (termo que afundou o presidente Carter entre liberais que viram nele um conservador cristão em trajes progressistas). Experimentamos diariamente o egoísmo e a irresponsabilidade na própria carne. Deixem-me esclarecer o que o termo "cultura" significa nesse contexto, para a direita cristã e os descendentes de Bloom. Se ao ouvir a palavra cultura você pensa em Rossini, na mais recente tradução de Anna Karenina, no Museu Guggenheim ou no seriado policial The Wire (A Escuta), provavelmente você é um liberal - ou, pelo menos, um conservador "cosmopolita? agarrado a suas crenças ultrapassadas. Mas se para você o termo significar formas de namoro ou preferência sexual, ou o relacionamento entre pais e filhos, ou o conjunto de rituais que giram em torno da posse e do uso de arma de fogo, ou, no sentido mais passional, modos de viver, de crer, de alegrar-se, de sofrer e morrer, santificados pela religião que você pratica e personificados na igreja à qual você pertence - se para você, cultura não significa primordialmente ópera ou HBO, então provavelmente você está aplaudindo a vida difícil com aparência de realidade de Sarah Palin. Nesse caso, você é o que se poderia chamar de um conservador autêntico ou bloomiano. Falando em geral, os liberais distinguem cultura de existência comum. Eles "praticam" cultura e "praticam" a vida - apreciam um Vermeer e em seguida procuram a creche perfeita para os filhos. Mas, para os conservadores, criar filhos, usar a disciplina da fé para suportar a doença ou os reveses, amar a vida desde sua concepção, são tarefas culturais e valores inseparáveis dos desafios da vida cotidiana. A idéia liberal de cultura como edificação ou diversão implica muito tempo livre. A idéia conservadora de cultura como caminho através da vida (semelhante à idéia de cultura do antropólogo) implica contínua imersão em trabalho e adversidade. Esta é a cultura definida como crenças e atividades significativas que são a resposta às necessidades e às adversidades. Neste sentido, cultura é tão familiar quanto a jornada de oito horas, e tão íntima quanto uma função biológica. É uma questão de vida e morte. Podemos chamá-la de cultura orgânica, em contraposição a cultura fabricada. É por isso que a obra What?s the Matter with Kansas? (Que acontece com o Kansas?), de Thomas Frank ( 2004), que critica a estratégia cultural dos republicanos e tanta influência exerceu, teve um efeito tão negativo no destino dos democratas - pelo simples motivo de que Frank garantiu aos democratas que eles não precisavam responder ao modo como os republicanos estavam manipulando a cultura orgânica. Muito convincente, Frank argumentou que os republicanos usavam questões culturais para desviar a atenção de seus eleitores da política econômica republicana, que, ironicamente, prejudicava as próprias pessoas que votavam neles. Frank acreditava que, para reconquistar a Casa Branca, os democratas precisavam continuar martelando a questão das disparidades econômicas produzidas pelos republicanos. A campanha de Barack Obama está fazendo exatamente isso. Entretanto, para muitos, a fé na cultura orgânica é algo íntimo e gera poder, enquanto a fé na política é como tentar conversar com a TV. Mas a cultura orgânica tem seu lado sórdido, também. Não enxergar o papel que a cultura desempenha na política, ou mesmo desprezar a questão, vai além da cegueira fatal dos democratas a respeito do problema brutal da raça nos Estados Unidos. Quando, durante as primárias, o casal Clinton pareceu aludir à possibilidade de o senador Obama eleger-se em razão de sua raça, foi acusado por muitos de seus colegas democratas de "jogar a cartada da raça". É incrível que, somente nos últimos meses, os liberais tenham começado a se perguntar publicamente se o país estaria pronto para um presidente negro. Só recentemente começaram a indagar com seriedade se as pessoas falavam realmente a verdade nas pesquisas de opinião sobre suas atitudes em relação à raça. ("A raça influirá no seu voto para presidente?" "Raça?! Eu? Está brincando? Claro que não.") Durante um ano e meio, os comentaristas liberais, de maneira geral, escreveram textos tão embevecidos e despidos de qualquer ceticismo sobre a candidatura de Obama que se poderia pensar que ele fosse um sujeito branco muito bronzeado. Era como se as pessoas tivessem medo de que, se falassem honestamente sobre racismo como um dos pontos cruciais da candidatura Obama, pudessem ser consideradas racistas. Na realidade, foi como se, ignorando as atitudes racistas quando escreviam sobre Obama, os comentaristas liberais conferissem a eles próprios o virtuoso idealismo que fantasticamente atribuíam ao país como um todo. É um fato psicológico elementar elogiarmos freqüentemente em um grau absurdo o que nos provoca certo desconforto - ou colocarmos a causa do desconforto sob uma luz ideal até o impossível, a fim de mantermos a maior distância possível entre nós... e a pessoa que tememos ser de fato. A política, por definição, é a arte de tornar o abstrato algo palpável e real. No reino da cultura orgânica, as idéias abstratas sobre a vida já estão encarnadas na própria vida. Bill Clinton poderia ter pregado à multidão em Denver sobre a importância do "poder do exemplo". No entanto, são os estrategistas republicanos que praticam essa idéia com habilidade consumada. Há alguns anos, os republicanos pareciam ter trocado Russell Kirk, o pai intelectual do moderno conservadorismo americano, por Mark Bennett - o criador de Survivor e o pai dos reality shows da TV, uma forma de entretenimento na qual você começa a apreciar o exemplo da ambição castigada. Os ganhadores desses programas conquistam a afeição do telespectador por passarem por toda a série de provações e humilhações. Do mesmo modo, os republicanos perceberam intuitivamente um novo estilo virulento de democracia, acelerado pela internet, no qual a autoridade precisa ser humilhada antes de poder liderar ou voltar a liderar. A autoridade que é pré-humilhada tem quase uma vantagem tática. A história da terrível experiência de John McCain como prisioneiro de guerra em Hanói não só demonstra seu heroísmo e patriotismo, como retrata sua humilhação e o esmagamento de seu ego, como o próprio senador explicou. A terrível imagem de McCain sendo espancado sem piedade em algum asqueroso subterrâneo de tortura é uma imagem de poderosa autoridade - um político nacional, um senador dos Estados Unidos - sendo obrigado a curvar-se ao poder mais alto por uma necessidade maligna. É uma imagem que alimenta a garganta da democracia contemporânea que iguala a todos. O senador McCain não está acima de nós, diz essa história cuidadosamente elaborada. Ele não está no nível elevado dos três alvos fáceis - os políticos articulados, intelectualmente superiores e formados nas melhores universidades do país, como Al Gore, John Kerry e agora o senador Obama (que nome! seria como ter um candidato democrata à presidência que se chamasse Pruchev no auge da Guerra Fria). McCain não se parece minimamente com Obama, cuja autobiografia igualmente bem trabalhada conta uma história de indecisões juvenis, perambulações, curiosidade pela droga e redenção como jovem privilegiado que trabalhou entre os pobres e os sem direito a voto. McCain, entretanto, começou em um buraco negro de chocantes desastres, um eco extremo de outros lugares onde hoje em dia tantas pessoas se encontram. Obama continua lutando com o pecado do orgulho, diz, com seu sorriso confiante e seu ar perfeitamente seguro de si. Você é até perdoado por pensar que ele exibe com altivez seu desprezo pelo próprio orgulho desmedido. McCain, por sua vez, confessa com um sorriso que é quase uma careta: "Fui um servidor imperfeito de meu país por muitos anos". E descreve as pungentes origens de sua imperfeição. Ao mesmo tempo, o professor Obama explica, com seu modo eloqüente e comovente, a distinção teórica entre "deveria ser" e "é". A diferença entre o candidato republicano maltratado pelo destino e o democrata com seus temas cruciais é como a diferença entre uma brochura sobre mercado popular e o programa de um curso universitário. Ultimamente, a fluência cultural dos republicanos lhes conferiu outra vantagem em relação aos democratas, pois nesta temporada teremos a primeira eleição realmente pós-moderna. As campanhas políticas modernas são misturas de política, espetáculo e entretenimento. As pós-modernas estão cheias de identidades fluidas, significados livres e fronteiras indistintas, a ponto de termos estáveis como "política", "espetáculo" e "entretenimento" quase não existirem como conceitos separados. Essas inovações, se preferirem, são mudanças da cultura, e a imersão total da política em uma atmosfera cultural é uma tendência perfeitamente adequada ao partido da cultura orgânica. Todas as qualidades pós-modernas estão presentes e vigorosas. Ali está o pastiche histórico, quando Obama nos oferece uma mistura de JFK, um pouquinho de LBJ, outro de FDR e mais um pouco de MLK (Martin Luther King), enquanto McCain oferece uma pitada de Reagan aqui, algum Nixon ali e um tanto de Truman em toda parte. Percebe-se uma espécie de relatividade acelerada, enquanto os candidatos trocam em um segundo posições que tinham há muito tempo e até assimilam as posições do concorrente. E então, ambos tratam de responder quase histericamente a uma ilusão de opiniões majoritárias: alguns direitistas gritam e McCain escolhe uma candidata a vice de direita para acalmá-los (como se mais do que, relativamente, um punhado de evangélicos fosse votar em Obama ou ameaçasse ficar em casa, fazendo aumentar o risco de vitória de Obama); partidários de Hillary levantam a voz e Obama decide não escolher uma mulher para vice a fim de não inflamar os ânimos (como se um punhado de partidários insatisfeitos de Hillary fosse votar em McCain ou ameaçasse ficar em casa, deixando escapar a vitória para este). O mais surpreendente é o fato de o Partido Republicano - o partido dos fundamentalistas cristãos e dos discípulos de Allan Bloom - ter-se adaptado habilmente ao ambiente pós-moderno. Obama e McCain estão trabalhando as alavancas do universo do YouTube. Obama diz a seus partidários: "Esta eleição não me diz respeito, diz respeito a vocês", enquanto McCain declara: "Não trabalho para mim. Trabalho para vocês". Nessa nova cultura participativa, "vocês" se tornou uma espécie de primeira pessoa generalizada, e a primeira pessoa - como a dos memorialistas onipresentes - faz o trabalho de um "vocês" particularizado. Em outras palavras, a função vicária, de substituto, tornou-se um princípio universal. Amamos pessoas que nos permitem imaginar que habitamos suas vidas. Isto talvez explique a crescente aversão por líderes cujas coroas não são feitas de espinhos, em cuja vida não podemos imaginar penetrar. Em ambos os sentidos, Sarah Palin exerce um grande apelo para certo tipo de eleitor. Nesse clima, o que pareceria ser a luta da governadora Palin com a inadequação serve como evidência do seu potencial para liderar. Ela não precisa fazer muito esforço. Toda revelação de uma aparente deficiência em seu temperamento, julgamento ou caráter é mais uma porta de acesso a sua vida. Os republicanos fizeram da aceitação dos defeitos da governadora Palin a comprovação de seu compromisso com o altruísmo. Toda essa conversa abstrata sobre a mudança compassiva não pode comparar-se a um exemplo concreto de perdão. Quanto a Obama, com suas frases abstratas, suas histórias autobiográficas de triunfo sobre a imperfeição humana, acaba parecendo insuficientemente imperfeito para liderar. Para Obama é bastante negativo o fato de, em sua "complexidade", ter aparentemente alguma relação com McCain, o herói em ação, que o sofisticado e complexo Adlai Stevenson tinha de Eisenhower, outro herói em ação. Pior ainda, na elevada maneira de pensar e falar de Obama, ele não pode tocar nas aparentes realizações de uma mãe que leva o filho ao jogo de hóquei, essa mulher mesquinha, insignificante, vingativa, de mentalidade estreita, no reino da simples confusão humana. Em outras palavras, as contorções e reviravoltas, os contrastes, as incongruências e as claras contradições da equipe de McCain e Palin fazem deles a dupla perfeita para nossa cultura superdistraída. (O fator POW (prisioneiro de guerra) somado ao fator WOW (Uau!). Por sua vez, Obama e Biden são como o agudo e o grave no sistema estereofônico tradicional - um completa o outro. Olhar e ouvir o senador pelo Arizona e a governadora do Alasca, lado a lado, ou um depois do outro, é como ouvir um iPod, trocar mensagens instantâneas, assistir à TV e conversar no celular, tudo de uma vez. Não, não se trata de guerra de culturas, mas apenas do domínio unilateral da estratégia cultural dos republicanos. Os democratas consideram a atenção às práticas e preconceitos da vida diária uma estratégia diversionista em relação aos "temas fundamentais", enquanto o PR, o partido do status quo, revelou-se extraordinariamente hábil em usar suas antenas culturais para adaptar-se aos novos tempos. Quem poderia saber? Os republicanos poderão ou não ser o partido que realizará a mudança. Mas com certeza são o partido que sabe como usá-la. *Lee Siegel, escritor e crítico cultural, é colunista da New Republic e colaborador de algumas das principais publicações dos EUA. Seu livro mais recente é Against the Machine: Being Human in the Age of the Electronic Mob (Random House). Escreveu este artigo para The Wall Street Journal

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