O ensino não tão superior

Péssimo desempenho de alguns cursos de Direito contrapõe o Brasil do mero diploma e o Brasil da pesquisa séria

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Por José de Souza Martins
Atualização:

Volta e meia o Brasil fácil bate o Brasil sério, emerge dos subterrâneos do faz de conta e ganha o interesse da opinião pública. O ufanismo do Brasil ignorante, oportunista, populista e fisiológico sobrepõe-se com freqüência ao Brasil culto, sério, responsável e democrático. O Brasil do mero diploma, do rótulo, desafia o Brasil do conhecimento e da ciência, do estudo incansável, da pesquisa séria. Ocupa-lhe os espaços, disputa-lhe os recursos, sob o pretexto discutível da universidade para todos, um Fome Zero da educação de terceiro grau. Nestes dias ganhou notoriedade a divulgação dos resultados do Exame Nacional de Desempenho do Estudante (Enade), pelo Ministério da Educação, relativos aos cursos de Direito. Tiveram notas 1 e 2, numa escala em que a nota máxima é 5, 89 cursos, num total de 510 (17,5%), considerados ruins pelo MEC. Eles representam mais de 61 mil vagas no ensino de Direito no País. Conseguiram aprovar menos de 10% de seus inscritos, conforme destaca reportagem de Lisandra Paraguassú. Desses 89 cursos, 37 foram reprovados também no exame nacional da Ordem dos Advogados do Brasil e a eles correspondem mais de 38 mil vagas. Defensores dos interesses desse ensino superior, estigmatizado por seus próprios melancólicos resultados, argumentam que a uma empresa é melhor ter um funcionário bacharel do que um funcionário analfabeto. Como se o enfeite do mero diploma suprisse o conhecimento tão necessário nas profissões. Em julho, este jornal noticiava que metade dos quase mil cursos de diversas áreas, avaliados em três anos do Enade, apresentava resultados insatisfatórios e estava oferecendo bolsas do ProUni, o programa Universidade para Todos, do governo federal, em troca de isenções de impostos para as escolas que as concedessem. Além da tolerância do MEC com escolas superiores que são superiores não se sabe bem em que, o governo usa o ProUni para transferir dinheiro público para escolas privadas, não poucas das quais, como se vê, produzem diplomas, mas não produzem necessariamente competência. Num Brasil em que cresce o desemprego com o crescimento dos anos de escolaridade, essa aberração talvez tenha sentido. Se numa ponta do cenário da educação nos defrontamos com essas desalentadoras informações, na outra ponta o Brasil sério festejou nesta semana um de seus melhores êxitos na área do conhecimento e da pesquisa. Foi na posse do professor Celso Lafer como presidente da Fapesp - Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo. Lafer é professor titular da Faculdade de Direito, diplomata, foi ministro das Relações Exteriores, representante do Brasil na Organização Mundial de Comércio e participante ativo e representativo de ações na área da cultura e da ciência, membro da Academia Brasileira de Ciências e da Academia Brasileira de Letras. Não por acaso seu discurso tratou justamente do encontro entre as duas culturas, de que fala C. P. Snow, a cultura científica e a cultura humanística. Fez contraponto à fala de seu antecessor, agora Secretário de Ensino Superior, professor Carlos Vogt, que num poema remete a um embate de poetas em torno da figura de Newton, a que agregou seus próprios versos conclusivos. O governador José Serra arrematou esse diálogo agregando episódios de sua história pessoal e política e sublinhou, também ele, a necessidade desse encontro entre as humanidades e a ciência. Destacou momentos de grande proximidade com a Fapesp, desde quando era presidente da União Estadual de Estudantes e sua diretoria foi ao governador Carvalho Pinto apoiar a criação da entidade, em 1960. No exílio, dela obteve uma bolsa de pós-graduação, mesmo privado do passaporte pela ditadura militar. Envolveu-se, em 1989, na elevação do percentual da arrecadação estadual repassado à Fapesp, de 0,5% para 1%. E, finalmente, alterou o ano de referência do repasse do ano anterior para o do mesmo exercício da arrecadação, o que elevou substancialmente os recursos disponíveis para bolsas de estudo, projetos de pesquisa e outros projetos relacionados com o desenvolvimento científico e tecnológico. Só no ano passado, 522 milhões de reais foram empregados nesses programas. É reconhecido que o diferencial de ponta representado pelas universidades paulistas em relação a instituições similares da América Latina deve muito à Fapesp, expressão da história secular de uma elite empreendedora e de uma intelectualidade competente, marcada profundamente pela vocação do conhecimento. De certo modo, a numerosa audiência de pesquisadores na posse de Celso Lafer e a presença do governador, do vice, do presidente da Assembléia Legislativa, de secretários de Estado e deputados, de representantes da PUC e do Mackenzie, expressaram a imprescindível coesão em torno da relevância da nossa mais importante instituição no apoio à produção e difusão do conhecimento científico e tecnológico. Um ato literalmente litúrgico em contraposição às pressões do ensino sem conteúdo, das invasões e ocupações predatórias de recintos universitários e da destruição de laboratórios e campos experimentais em atos de quem debocha da formação acadêmica e neles manifesta suspeito rancor contra a inteligência. Episódios de uma guerra surda entre a civilização e a barbárie.

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