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O herói que virou ditador

Robert Mugabe poderia ter sido um Mandela, mas tornou-se um Idi Amin

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Quando criança, Robert Mugabe era um menino silencioso e pobre criado pela mãe, Bona, no país africano inventado pelo inglês Cecil Rhodes em 1888 e batizado a partir de seu nome, Rodésia. O pai, carpinteiro na pequena vila, abandonara mulher e filhos em 1934. Ano difícil, esse. Robert tinha 10. Seu irmão mais velho, Michael, morreu meses depois, quando bebeu veneno por acidente. Michael era inteligente e atlético, o ditador do Zimbábue lembraria anos mais tarde. Seu irmão era extrovertido. Robert não era nada disso. Não tinha amigos que não fossem os livros. Para sua principal biógrafa, a sul-africana Heidi Holland, esse foi seu principal traço, que se manteve pela vida e se aguça na velhice. É um homem ensimesmado, sem amigos. O Mugabe que salta das páginas do noticiário recente é um ditador brutal. Aos 84 anos, não tem pudores de virar uma eleição que evidentemente perdeu, de prender seu opositor ou de cuidar para que a polícia secreta torture ou mate cabos eleitorais e fiscais das eleições. É quase tentador apresentá-lo como um ditador africano caricatural, um tipo selvagem como Idi Amin Dada. Mas ele é um personagem mais complexo, um homem que poderia ter sido um Nelson Mandela e em algum momento, mudou. "Era um sujeito decente", lembra Holland, autora de Dinner with Mugabe. A mãe de Mugabe teve esperanças de ser freira, mas isso nunca se concretizou. Na ausência do pai, o menino feito chefe de família recebeu toda a educação do padre jesuíta irlandês Jerome O?Hea. Viviam juntos, padre e menino, ele sempre atento. O futuro ditador lia. Lia em sala de aula ou enquanto esperava a caça que serviria de almoço cair nas armadilhas no bosque. Passou a infância tímido, sem brincar, lembraria anos depois seu irmão caçula, Donato. Holland conheceu Mugabe em 1975, quando ele acabara de ser libertado. Ela era mãe de um bebê recém-nascido na Rodésia, uma branca engajada no projeto de direitos para os negros. Mugabe era um dos líderes em ascensão do movimento negro anticolonialista, um guerrilheiro intelectualizado e charmoso que estivera preso por dez anos. Ela ofereceu sua casa para um encontro secreto no qual Mugabe estaria presente. O país tinha um ditador branco a essa época, Ian Smith, que prometia um regime que excluiria negros para todo o sempre. A Holland, Mugabe pareceu um homem firme, porém gentil, que tinha pressa em pegar o trem que o levaria para o exílio em Moçambique. Preocupada com ele e com o filho dormindo no berço, ela guiou freneticamente conduzindo Mugabe pelas ruas da capital naquela madrugada. Só pensava no bebê sozinho. No dia seguinte, Mugabe ligou para agradecer a boa recepção e perguntou por seu filho. Ele parecia preocupado. A pressão da guerrilha fez o governo de Ian Smith definhar até não agüentar mais. Em 1979, o governo britânico convidou as partes a combinar um cessar-fogo para realizar conversas. Passaram quatro meses trancados em Lancaster House, no centro de Londres. Quando Mugabe saiu de lá, tinha um tratado de paz nas mãos que anistiava todos e convocava eleições. Em menos de um ano, num pleito democrático, se elegeria primeiro-ministro. Aos olhos do mundo, o país que nascia das cinzas da Rodésia, o Zimbábue, era um dos mais ricos da região, o maior produtor de alimentos da África. E seu líder era a promessa de anos melhores para todo o continente. Muitos analistas se digladiam com a lenta mudança ocorrida ao longo dos anos. O que terá feito mudar o premiê e depois presidente democrata do Zimbábue nos anos 1980 para transformá-lo no ditador dos 90? Há três momentos. O primeiro baque veio com a libertação, em 1990, de Nelson Mandela, na vizinha África do Sul. Repentinamente, Mugabe não era mais o símbolo dos direitos negros. Então, em 1993, morreu sua mulher e confidente, Sally Haifron. E, em 1997, houve a ascensão ao governo britânico de Tony Blair. Um dos itens do Tratado de Lancaster House é que, por pouco mais de uma década, o governo do Zimbábue não mexeria na estrutura agrária do país, predominantemente nas mãos de brancos. Aí, com dinheiro cedido pelo ex-colonizador, indenizaria os fazendeiros e faria uma reforma agrária. Os governos conservadores de Margaret Thatchet e John Major empurraram a questão do dinheiro sem jamais resolvê-la. Quando chegou a vez de Blair, ele tratou de comunicar que não pagaria. Robert Mugabe, a essas alturas, já era um ditador ensimesmado e paranóico que deixava livre, pelas noites, sua polícia secreta. A quem o entrevistasse, reclamava de Blair. Ao povo, o ditador fazia discursos na sua língua nativa, shona, mas também em inglês. Aos ministros, exigia que se portassem como gentlemen britânicos. Prezava a amizade com a rainha. E foi se isolando. Em 2000, permitiu que o povo revoltado começasse a tomar as fazendas. "Não é que consideremos a expulsão dos fazendeiros legal", ele disse. "Mas a terra é dos negros e Tony Blair não nos paga." Sem saber como tocar a indústria agrícola, a produção do celeiro da África despencou. O Zimbábue tem hoje a maior inflação do mundo. Seu título de sir da coroa britânica foi revogado na semana passada. Também perdeu, nos últimos meses, os títulos honorários de doutor das Universidades de Edimburgo e de Massachussetts. Eram símbolos que prezava: ser um gentleman da corte de sua Majestade e um intelectual reconhecido. Robert Mugabe está acuado. No ano passado, sua biógrafa o encontrou pela segunda vez. Teve a impressão de que ele cria a própria realidade e teme como será lembrado pela história. O ditador tem medo.

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