O home que ouve cores

Portador de raro daltonismo, que só permite enxergar em preto e branco, Neil Harbisson vislumbra um futuro em que seremos todos um pouco ciborgues

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Por Leonardo Ávila Teixeira
Atualização:
  Foto: REUTERS

Era 28 de maio de 2011. Noite de primavera em Barcelona. Enquanto o time de futebol homônimo vestia o tradicional uniforme azul e grená contra os guerreiros alvirrubros do Manchester United pela final do Champions League, manifestantes antiausteridade que ocupavam a Praça de Catalunha, na região central da cidade, voltavam a se defender do avanço policial pela segunda noite consecutiva. No meio do confronto, três oficiais abordaram o catalão Neil Harbisson, quebrando o que acreditavam ser uma espécie de câmera presa em sua cabeça. O ataque fez com que Harbisson perdesse a capacidade de discernir cores por quatro horas. Só que ele não apresentou qualquer ferimento, hematoma ou lesão quando foi realizar o boletim de ocorrência na delegacia. Em conversa em São Paulo na última semana, quando fez parte da agenda de palestras da Campus Party, Harbisson me disse que nem sequer sentiu dor durante o ataque.

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A tal “câmera” é na verdade uma parte de seu corpo. Harbisson tem 33 anos e é um dos primeiros indivíduos oficialmente reconhecidos como ciborgues: desde 2004, sua foto de passaporte exibe um implante cibernético como se não fosse um mero aparelho eletrônico. Sob o seu denso penteado de tigela, escapa uma antena, que começa de uma incisão na base da nuca (onde estão instalados um chip e receptor Wi-Fi) e se curva até a frente da testa, terminando em um pequeno sensor. Eis a “câmera”.

Harbisson, que nasceu com uma versão rara de daltonismo chamada acromatopsia, hoje depende do implante para “ver” as cores. Ver, entretanto, é um verbo flexível: ele percebe matizes através de alertas sonoros transmitidos do sensor direto para os ossos na base de seu crânio. “Som e cores são frequências”, observa Harbisson. “Ambos têm isso em comum”.

A ideia para o implante surgiu em 2003, durante sua graduação em música pela Dartington College of Arts, em Devon, Inglaterra. Seu novo órgão cibernético teve diversas formas até a implantação definitiva da antena em 2004 – desde um terceiro olho que seria adaptado sobre o osso do crânio até um dispositivo extracorpóreo de 5 quilos, que Harbisson chegou a usar como se fosse um kit bizarro de fones de ouvido. A cirurgia, que ocorreu de forma anônima, durou três horas, e, embora a recuperação tenha sido leve, o implante demorou dois meses para se estabelecer. Harbisson passou ainda por um período de três anos para se acostumar a diferenciar os 360 sons que formam sua paleta de cores.

Ele diz que em nenhum momento pensou na máquina como uma muleta, nem em sua condição como deficiência. “A razão pela qual queria entender cores era por ser curioso”, conta. “Todo mundo usa e menciona cores o tempo todo.” O interesse pelos tons, contudo, não o fez ter vontade de substituir seu mundo preto e branco. “Há vantagens em ver tons de cinza: vemos melhor no escuro, distinguimos formas com mais facilidade, não somos enganados por camuflagem e fotocópias em preto e branco são mais baratas”, ele brinca.

De toda forma, bastava ver Harbisson subindo ao palco da Campus Party naquela tarde de sábado para entender sua relação natural com o implante. O catalão se move a passos decididos e amplos, mas com o tronco levemente projetado para frente, como se quisesse dar ao sensor cadeira cativa na primeira fila de seu campo de visão. Sua familiaridade com o público e a maneira como se lança rápido a falar, sem entremeios, assim que tem a atenção da plateia, deixam claro seu entusiasmo com o ativismo.

Em 2010, Harbisson e a artista Moon Ribas (sua amiga de infância e colega ciborgue) fundaram a Cyborg Foundation, uma instituição internacional sediada em Nova York que almeja auxiliar interessados nas modificações e fomentar o debate em torno dos direitos ciborgues.

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Dar aos homens-máquina do futuro a liberdade de ir e vir e serem reconhecidos perante a lei soa como um passo lógico quando você ouve Harbisson tocar no assunto. Afinal, não é como se estivéssemos falando de eletrodomésticos: “Ser ciborgue não é se tornar uma máquina”, ele disse. “Ser ciborgue é se tornar mais animal, explorar seus sentidos, ficar mais próximos deles.” Gatos e abelhas são, como ele salienta, sensíveis a espectros de cores invisíveis aos nossos olhos; tubarões, por outro lado, têm bússolas biológicas que os ajudam a navegar pelo oceano. No futuro imaginado por Harbisson, máquinas capazes de simular essas sensações estarão disponíveis. E sob nossas peles.

A discussão, porém, levanta questionamentos que não estariam deslocados de um romance sci-fi. O implante de Harbisson, capaz também de captar sinais infravermelhos, dá a ele a capacidade de “sentir” sistemas de segurança; outras das mais populares opções disponíveis para interessados dão acesso a uma relação similar com campos magnéticos, ainda que de forma limitada. Eu pergunto a ele se implantes cibernéticos ajudarão a criar novos cidadãos, capazes de compreender espaços públicos de formas inéditas. A resposta é simples: nada que celulares ou bússolas não seriam igualmente capazes de realizar.

Harbisson não é um personagem tão distante de nossas próprias vidas. Ele habita um mundo parcialmente ciborgue: desde os avanços tecnológicos que tornaram possíveis iPhones e relógios inteligentes, vivemos em relações íntimas com computadores. Segundo levantamento do Pew Research Center em 2015, 46% dos norte-americanos usuários de smartphones dizem que o aparelho é algo que eles não podem viver sem. Para 46% dos brasileiros, o celular é, segundo a Nielsen Ibope, a última coisa que eles veem antes de dormir.

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O que Harbisson quer com seu trabalho e exemplo é ajudar pessoas interessadas em transformar ferramentas em novos sentidos corporais, e aí ele tem uma visão cristalina do futuro: “Nos anos 2020 será normal ver pessoas usufruindo de novas funções e partes do corpo sem sentir diferença entre o que é eletrônico e o que é biológico”.

Mas, enquanto isso, Harbisson fazia planos apenas para os dias seguintes: “Amanhã vou ao Rio. Quero ouvir os sons das cores do Carnaval. Acho que vai ser doido”. Talvez nada tenha me deixado tão a par da visão dele sobre o estranho mundo colorido que habitamos que sua expectativa de carnavalesco de primeira viagem. “Imagino que seja quase como entrar em um grande corredor de supermercado!”

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