O lado rodriguiano dos americanos

Uma obsessão com as puladas de cerca dos poderosos corrói a nação. Enquanto isso, a Al-Qaeda se reorganiza no sul do Iêmen

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Por KENNETH SERBIN - CHEFE DO DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA DA UNIVERSIDADE DE SAN DIEGO. FOI PRESIDENTE DA BRASA (BRAZILIAN STUDIES ASSOCIATION) DE 2006 A 2008
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A sociedade americana é como Olegário, o marido ciumento da peça A Mulher sem Pecado, de Nelson Rodrigues. Vive descobrindo casos extraconjugais. No caminho, acaba perdendo o contato com a realidade.Nelson Rodrigues teria muito a dizer sobre o escândalo sexual envolvendo o general David Petraeus, que gerou mais um frenesi midiático nos EUA. Se a história recente nos serve de lição, o escândalo terá efeitos duradouros, não em virtude de toda a atenção que desperta hoje, mas em razão de outras questões, bem mais importantes, que o próprio caso obscurece.A pós-moderna obsessão puritana que os americanos têm com o sexo e com os poderosos veio à tona pela primeira vez em 1991, quando a professora de direito Anita Hill acusou Clarence Thomas, que havia sido indicado para a Suprema Corte, de tê-la assediado sexualmente, depois que ela se recusou a sair com ele quando era sua subordinada numa comissão governamental.Nos dias que se seguiram ao vazamento do depoimento de Hill ao FBI, as audiências do Senado dedicadas à aprovação da indicação de Thomas, transmitidas pela TV, tornaram-se uma paixão nacional. Os americanos não desgrudavam os olhos da tela, enquanto os senadores embarcavam em discussões picantes sobre quem havia dito o quê. Foi, talvez, a primeira ocasião na história dos EUA em que se assistiu a um debate tão franco sobre a relação entre sexo e poder.Os senadores se preocuparam também com aspectos mais fundamentais, como a opinião de Thomas sobre temas sérios, como o aborto e as políticas de ação afirmativa, além de avaliar se ele tinha competência jurídica para se tornar ministro da Suprema Corte. No frigir dos ovos, porém, o sexo ofuscou tudo o mais. A indicação de Thomas acabou sendo aprovada em 15 de outubro de 1991.Apenas 16 meses mais tarde, em 26 de fevereiro de 1993, terroristas ligados à Al-Qaeda promoveram um atentado à bomba contra o World Trade Center, em Nova York, matando 6 pessoas e ferindo 1.500.Apenas seis anos mais tarde, os americanos viram o então presidente Bill Clinton declarar, numa audiência pública transmitida para todo o país: "Não tive relações sexuais (com Monica Lewinsky)".Em dezembro de 1998, em decorrência das investigações sobre o caso Clinton-Lewinski e dos crimes que o presidente teria cometido durante essas investigações, Clinton tornou-se o segundo presidente dos EUA a ter seu impeachment aprovado pela Câmara dos Representantes. No Senado, porém, acabou sendo inocentado. Mais uma vez, o sexo falava mais alto.Enquanto isso, terroristas da Al-Qaeda planejavam os atentados do 11 de Setembro, que ocorreriam menos de três anos após o julgamento de Clinton. Não é difícil imaginar os terroristas escarnecendo e rindo do establishment americano, cuja preocupação tão desmedida com os escândalos sexuais faz perder de vista os valores de responsabilidade política e pessoal que acompanham a cidadania, dando aos que planejam atentados ampla liberdade de ação.Antes mesmo de sermos informados sobre o affair de Petraeus com Paula Broadwell, a imprensa noticiava que Monica Lewinsky, que completa 40 anos em 2013, receberá US$ 12 milhões para escrever um livro "contando tudo" sobre seu caso com Clinton. É bem verdade que a veracidade da notícia foi negada por ao menos um órgão de imprensa.Mais uma vez, fiando-se no modelo sexo-é-que-vende-jornal, os meios de comunicação repercutiram gostosamente o fato. O conservador e vulgar New York Post se referiu a Clinton como o "tarado-em-chefe", e o sensacionalista National Enquirer informou que Lewinsky pretendia descrever o "apetite insaciável de Clinton por ménages à trois, orgias e brinquedos eróticos". A noção de que o jornalismo é um instrumento de educação do populacho desaparece a olhos vistos.Para grande parte da mídia e do público, a questão central no episódio Petraeus-Broadwell é, mais uma vez, escarafunchar os detalhes do escândalo e descobrir como ele foi revelado. Os repórteres estão particularmente preocupados em falar do papel das trocas de correspondência eletrônica no caso - uma forma de noticiar uma mudança no modo como as pessoas se comunicam hoje em dia. No entanto, a questão verdadeiramente importante é: em que medida aumentou, internamente e externamente, a vulnerabilidade dos EUA?A mídia retratou Petraeus como um grande general, um herói americano, comparável, segundo um analista de televisão, a Dwight D. Eisenhower. Houve quem especulasse que o general Eisenhower teria tido um caso com a motorista de seu jipe, mas nenhuma prova histórica disso veio à tona. O general que se destacou na 2ª Guerra acabou conquistando a presidência dos EUA por dois mandatos consecutivos, tirou o país do imbróglio da Guerra da Coreia e evitou uma conflagração nuclear com a União Soviética. Em contraste, a carreira de Petraeus no serviço público sofreu uma brecada daquelas.Por incrível que pareça, o general John Allen, que sucedeu a Petraeus no Afeganistão - um país conhecido como o cemitério das civilizações que tentaram conquistá-lo - está enredado no mesmo escândalo. Depois de declarar na TV que se dedicava em tempo integral a que os EUA tivessem sucesso em terras afegãs, ele também, como Petraeus, pegará o chapéu e seguirá seu rumo sem ter solucionado o conflito, a mais longa guerra travada pelos EUA.Não custa lembrar ainda que, sob o comando de Petraeus, a CIA não conseguiu evitar - quanto mais prever - o ataque ao consulado americano em Benghazi, na Líbia.Enquanto isso, a Al-Qaeda expande seus tentáculos no sul do Iêmen, onde talvez esteja consolidando um domínio ainda mais formidável do que o que chegou a ter no Afeganistão. Os EUA tentam combater a ofensiva com incursões de aviões não tripulados. O sul do Iêmen não deu manchete na semana passada. De modo que a miopia americana continua a imperar - livre, leve e solta. / TRADUÇÃO DE ALEXANDRE HUBNER

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