O longo e épico adeus

Fidel se afastou do poder como viveu sua vida: sempre no centro das atenções

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Por Jon Lee Anderson
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No início dos anos 90, quando eu morava em Havana com a família, minha filha mais velha, Bella, então com cerca de 6 anos, chegou da escola num estado de excitação. Ela me perguntou, em espanhol: "Papai, você sabe o que significa amor?" Fingi que não sabia. Bella respirou fundo e recitou: "Amor es lo que Fidel siente para el pueblo". Cuidando para não demonstrar meu incômodo, parabenizei Bella por sua memória, e ela brilhou de orgulho. Compreensivelmente, estava muito feliz com a façanha escolar. A escola primária de Havana que Bella freqüentava chamava-se Eliseo Reyes, em homenagem a um guerrilheiro cubano que acompanhara Ernesto Che Guevara na expedição final à Bolívia e morrera com ele no país, lutando pela causa da revolução marxista. Acima da porta principal da escola, uma placa de madeira dizia: "Muerte a Traidores". A cartilha de Bella trazia pequenos símbolos ilustrando cada letra do alfabeto. O símbolo de "F", por exemplo, era um fuzil, enquanto o de "T" era um tanque. Espalhavam-se pelo livro dizeres de Fidel sobre a importância da educação, do estudo e do dever revolucionário. Também havia fotos. Uma mostrava um jovem Fidel entrando em Havana num tanque. Outra o exibia no calor da batalha, comandando as tropas cubanas durante a invasão da Baía dos Porcos , em 1961. Na cartilha escolar, Fidel Castro sempre era citado apenas como Fidel. Inevitavelmente, nos três anos que vivemos em Cuba, Fidel se tornou uma figura ao mesmo tempo familiar e emblemática para meus filhos - metade avô, metade Deus. Com os feitos e aforismos de Fidel servindo de alimento diário e seu rosto e sua voz onipresentes toda noite na televisão, meus filhos aprenderam que El Jefe Máximo era o supremo guia que controlava suas vidas e as de todos ao redor. Ele representava o passado, o presente e também o futuro. Fidel, de algum modo, era Cuba. Agora, aparentemente, Fidel renuncia. A doença e a idade já o obrigaram a deixar a arena pública, que ocupou por quase meio século, para sumir num longo isolamento desde julho de 2006. À parte o estilo basicamente silencioso de seu demorado adeus, pareceu adequado Fidel ter se afastado do mesmo modo que viveu sua vida - como num longo épico. Ao não aparecer em público, ao desaparecer e no entanto não desaparecer, ele continuou sendo, claramente, o centro das atenções em Cuba, como sempre foi. Se a sobrevivência é uma virtude, Fidel é de fato um grande virtuoso, pois está conosco há muitíssimo tempo. Em 1957, quando ele estava na Sierra Maestra combatendo o ditador cubano Fulgencio Batista, Dwight D. Eisenhower era o presidente americano e os Estados Unidos ainda tinham só 48 Estados. Durante os dois anos da guerra de guerrilha de Fidel, os soviéticos puseram o Sputnik no espaço, Detroit lançou o Ford Edsel e Leave it to Beaver estreou na TV americana. Fidel tomou o poder em janeiro de 1959 e se transformou no mais longevo líder político do mundo, sobrevivendo não apenas a nove presidentes americanos, mas também a seu maior patrocinador ideológico e financeiro, a União Soviética. O comunismo ruiu; Fidel, não. Ao longo das décadas, ele deixou sua marca muito além das fronteiras de Cuba. Da ruptura com os Estados Unidos, da adoção do socialismo e da aliança com a URSS (que levaram à invasão da Baía dos Porcos e depois à crise dos mísseis) ao patrocínio a longo prazo da revolução marxista na América Latina e na África, o desafio de Fidel à hegemonia americana no exterior acabou por redefinir a Guerra Fria. A relevância política internacional de Fidel pode ter definhado depois da era do confronto das superpotências, mas sua mera sobrevivência o transformou num dos estadistas mais velhos do mundo, e também um dos mais admirados. O embargo comercial dos Estados Unidos contra Cuba - um rude legado da guerra fria que existe há 46 anos e continua em vigor - só aumentou a torcida pró-Fidel, assim como inspirou outros a seguir seu exemplo de "rato que ruge". O mais proeminente é o presidente da Venezuela, Hugo Chávez, que deixa bem clara a intenção de imitar Fidel desafiando com vigor as políticas dos EUA em seu país e ao redor do mundo. Já em Cuba, pode-se dizer que a revolução foi um experimento político, social e econômico bem-sucedido em alguns aspectos e desastroso em muitos outros, garantindo que seu legado doméstico será controverso e, talvez, tão duradouro quanto seu governo. Muitos cubanos são genuinamente leais a Fidel e têm pavor das incertezas que sua morte deverá trazer. Seu irmão mais novo, Raúl, assumiu discretamente o papel consagrado de sucessor de Fidel. Isso já representou uma espécie de continuidade, mas a idade avançada de Raúl, 76 anos, significa que ele será apenas uma figura de transição. Assim, o futuro do país ainda é uma questão em aberto. Por outro lado, muitos cubanos sonharam durante anos com a morte de Fidel, convencidos de que o destino os puniu entregando suas vidas a esse homem particularmente obstinado, egocêntrico e resistente. Sob ele, suas vidas transcorreram numa espécie de invólucro de realidade sufocante, um reino exclusivamente cubano no qual o tempo pára e avança simultaneamente, oscilando entre episódios dramáticos ligados inextricavelmente aos caprichos e desejos de Fidel. Como ele sempre imaginou a si mesmo, seus compatriotas e Cuba envolvidos numa luta heróica - pelo socialismo, contra o imperialismo, em defesa da soberania nacional e assim por diante -, isso de algum modo se concretizou. Graças à sua constante exaltação da rotina cubana como algo vital na luta pela sobrevivência da revolução, existe um senso coletivo de significado no dia-a-dia de Cuba. Em 2005, por exemplo, depois que Fidel lançou uma campanha nacional de economia de energia, seu governo importou uma enorme quantidade de panelas de pressão chinesas e começou a distribuí-las aos cubanos a preços subsidiados. Em seguida, numa série de discursos na TV, ele explicou os problemas energéticos de Cuba e argumentou que a eficiência das panelas de pressão transformara sua aquisição num dever patriótico. É difícil imaginar alguém, que não Fidel, capaz de transformar um utensílio de cozinha numa prioridade nacional urgente. Com Fidel dedicando a mesma paixão a tudo, das campanhas de erradicação de mosquitos - "a batalha contra a dengue" - à luta para "preservar as conquistas do socialismo", a existência cotidiana adquiriu um sentido solene, mas freqüentemente desolado para os cubanos, pois as escaramuças na grande revolução são intermináveis e o futuro perfeito nunca chega. Suspeito que, com Fidel afastado, não só seus defensores sintam sua falta, mas também seus oponentes. Por mais que eles tenham sofrido, a qualidade épica de suas próprias vidas desaparece com o eclipse da era de Fidel. O próximo golpe será sua morte e, inevitavelmente, o rebaixamento da história cubana e, talvez, da própria ilha. Se, nos últimos 49 anos, Fidel foi Cuba, o que Cuba será sem ele? Todo cubano entende que a renúncia de Fidel - ou mesmo sua morte - não levará necessariamente ao fim do longo impasse entre Cuba e Estados Unidos e, de um modo ou de outro, o futuro da ilha será determinado, direta ou indiretamente, como sempre foi, por decisões tomadas em Washington. Há poucos anos, Caleb McCarry, nomeado "coordenador da transição em Cuba" pelo governo Bush, disse-me que, mesmo se Raúl Castro adotasse medidas para abrir a economia, como fez a China, isso não alteraria a política dos EUA para a ilha. "Liberdades econômicas são importantes", afirmou McCarry, "mas é preciso haver também liberdade política - democracia multipartidária. No fim das contas, é isso que ajudará os cubanos a encarar o legado da ditadura sob a qual viveram e definir um futuro onde a reconciliação e a liberdade sejam possíveis. Em outras palavras, a solução é uma transição genuína que devolva a soberania ao povo cubano, permitindo que ele decida quem serão seus líderes." Na falta disso, o governo americano "continuará a oferecer uma transição real em Cuba, e continuaremos tratando o regime com firmeza". Tal discurso franco em Washington sobre a promoção da "mudança de regime" soa, para a maioria dos cubanos que conheço, incluindo detratores de Fidel, insuportavelmente intervencionista. Mas isso não é nenhuma novidade; esse discurso é tão velho quanto a nação cubana, ela própria criada pela intervenção dos EUA durante a Guerra Hispano-Americana. Com a independência cubana veio uma série quase ininterrupta de regimes pró-americanos, alguns totalmente submissos. Muito antes de se tornar um socialista, Fidel foi um fervoroso nacionalista cubano que concebeu sua revolução como o antídoto da intromissão ianque ao longo da história do país. Mais tarde, passou a acreditar que ele e sua revolução haviam finalmente garantido a soberania cubana total - ou, como ele dizia com freqüência, a "dignidade" - ao enfrentar os Estados Unidos e sobreviver. Numa conversa que tivemos em 2006, Ricardo Alarcón, o presidente da Assembléia Nacional de Cuba, sugeriu que a independência cubana foi a conquista mais importante de Fidel e sua revolução. Mas Alarcón também pareceu temer que no futuro, depois de Fidel, a soberania do país não esteja mais garantida. Ele afirmou: "Temos um dilema básico, praticamente sem paralelo. Sabe por quê? Porque sempre seremos um país pequeno, enquanto o outro - o seu - sempre será grande. Não importando os problemas que vocês tenham no Iraque, com sua economia e tudo o mais, o fato é que vocês são uma grande potência e Cuba é um pequeno país. Há duas realidades que vocês não podem mudar: a grande desproporção entre as duas nações e sua proximidade geográfica, o que para nós é tudo". "Sabe qual é nosso grande problema? Observamos, e o que vemos é um jogo desigual. Não temos como realmente competir, então tudo o que podemos fazer é apostar na idéia de que um dia haverá nos Estados Unidos um governo motivado por outras idéias, outras atitudes." O tempo dirá. Cada um dos candidatos presidenciais americanos reagiu à renúncia de Fidel com pedidos de liberdade em Cuba. Barack Obama disse que os EUA deveriam estar prontos para normalizar as relações se Havana "começasse a abrir Cuba a mudanças democráticas significativas". Mas por enquanto, depois de 50 anos de revolução e 81 de vida, Fidel está quase no fim, e Cuba e os Estados Unidos permanecem onde sempre estiveram - separados pelo mar, a 145 quilômetros um do outro.

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