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O machadiano da grande área

Por Sérgio Augusto
Atualização:

Foram tantos a proclamar, nos últimos dias, que Armando Nogueira formava com Nelson Rodrigues e João Saldanha a santíssima trindade da crônica esportiva brasileira, que passei a duvidar que tivesse sido o primeiro a dizer tal coisa, no prefácio que há sete anos escrevi para a coletânea de crônicas de Armando, A Ginga e o Jogo. Na minha trindade, porém, o lugar de Saldanha é ocupado por Mário Filho, irmão mais velho de Nelson Rodrigues, magnífico cronista e ensaísta esportivo, além de padroeiro do Maracanã. Saldanha foi um gênio da oralidade, da palavra falada. Na categoria texto, os três maiores foram mesmo os dois Rodrigues e o Nogueira. Machadiano, outro lugar-comum, só Armando de fato o era. Não se sentia confortável com a comparação, talvez por modéstia ou porque, no íntimo, preferisse ser comparado a Manuel Bandeira, seu poeta de coração. E de saudação. Suas conversas telefônicas com outro poeta, Thiago de Mello, velho e fraternal amigo exilado na Amazônia, sempre começavam com um verso de Bandeira. "Alô, cotovia! Aonde voaste, por onde andaste?", saudava Thiago. "Andei onde deu o vento, onde foi meu pensamento", respondia Armando, que, aliás, adorava os ventos (menos o terral) e o ar das alturas, seus infalíveis companheiros nos voos de ultraleve, seu passatempo favorito. Identificava-se com o modo folgazão como Bandeira encarava o mundo, assim como encontrou na prosa enxuta e matreira de Borges outra alma irmã. Machado? É o parâmetro inevitável de qualquer escritor elegante, irônico e cheio de astúcias que nestas paragens atinja determinado nível de excelência. Insisto na comparação com Machado porque, como botafoguense, a desejo plena. Se no ano em que o Bruxo do Cosme Velho morreu, o Fluminense, seu time de futebol segundo um devaneio de Paulo Mendes Campos, venceu o Campeonato Carioca, as chances de o Botafogo conquistar o deste ano aumentaram um bocado na manhã de segunda-feira passada, quando Armando perdeu nos pênaltis para um câncer nocérebro.O Botafogo foi amor à primeira vista, despertado pelo primeiro jogo de futebol a que assistiu no Rio, tão logo chegou de Xapuri, no Acre. Em campo, o então bicampeão Flamengo contra um desacreditado Botafogo, que no entanto venceu de virada: 5 a 2. A bem dizer, Armando descobriu, naquele domingo de 1944, suas duas primeiras paixões cariocas: o time da estrela solitária ("radiosa como a luz da tarde ensolarada") e Heleno de Freitas, autor de dois gols na partida. Outros deuses alvinegros (Nilton Santos, Garrincha, Didi) se incorporariam ao seu olimpo pessoal, uma constelação mítica com craques de múltiplas gerações e origens, de Pelé a Domingos da Guia, de Zizinho a Beckenbauer, de Puskas a Zico, de Di Stéfano a Romário. Sobre cada um desses e outros gênios da pelota escreveu frases e expressões memoráveis, relembradas e decantadas na farta e justa cobertura que os jornais e a TV deram à sua morte, parte delas originada na coluna Na Grande Área, que manteve por muitos anos no Jornal do Brasil. Paulo Francis a considerava "uma aula de português e uma experiência estética". Era. Minhas preferidas são praticamente as mesmas de todos os admiradores de Armando, mas guardo especial admiração pelo título que ele, ainda redator do Diário Carioca, em meados dos anos 1950, deu a uma reportagem sobre Ademir da Guia, que acabara de despontar no Bangu - Ademir da Guia: Nome, Sobrenome e Futebol de Craque. Um ditado parafraseado talvez explique as razões da alta qualidade literária dos textos de Armando: Dize-me com quem andas (e quem lês) e eu te direi como escreves. Além de muito ler, Armando andava com Rubem Braga, Otto Lara Resende, Paulo Mendes Campos e Fernando Sabino - mais que uma confraria, uma arcádia particular. Condicionado pela espantosa capacidade de Otto para aproximar pessoas, inclusive as desavindas, imaginou-o jogador de futebol, na posição que melhor se ajustava ao seu perfil: meia de ligação. Otto seria o armador da equipe, "obreiro singular do passe", pois o passe "estreita as almas, aproxima, é diálogo, metáfora de solidariedade". Ainda não conhecia essa crônica quando, ao imaginar um dream team só com intelectuais botafoguenses, para um livro sobre o Botafogo, escalei Otto justamente no meio de campo, a alimentar um ataque formado por Glauber Rocha, Luís Fernando Verissimo, Ivan Lessa e Antonio Cândido. Nesse escrete imbatível, Armando integraria a comissão técnica, ao lado de Saldanha e Sandro Moreyra. Embora admirasse um bom passe, em especial os oblíquos de Didi e os de precisão suíça saídos da áurea canhotinha de Gerson, seu xodó era o drible. "O passe é razão, o drible, intuição (...) A bola do passe dá fruto. A bola do drible dá flor. O drible tem aroma. Por onde passa, vai deixando um rastro colorido: é arco-íris." Daí a incomensurável paixão por Garrincha e seus "dribles febris e indomáveis". Foi Armando quem o apelidou de "anjo de pernas tortas".Ficamos grandes amigos. Eu lhe contava histórias de cinema e ele, as melhores do futebol que não pude ver: as épicas cabeçadas de Heleno de Freitas, os intrépidos avanços de Domingos, as mágicas de Di Stéfano e Labruna, as sinfonias da seleção húngara de 1954. A música também deu muita seiva à nossa amizade. Gaitista amador, Armando tinha entre os amigos mais chegados o pianista João Donato (seu conterrâneo), o poeta & letrista Abel Silva e o compositor Paulo S, presenças obrigatórias em suas intimíssimas festas de aniversário, quase sempre na cobertura de Ana Helena, ex-mulher de Thiago de Mello. Mas até eles foram barrados de sua festa de 80 anos, em 2007. Nela, o aniversariante só queria mulheres: 80 ao todo, entre amigas e ex-namoradas. Armando gostava ainda mais de mulher que de futebol, preferência contraída na infância, ao contemplar a imagem de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, numa estampa do sabonete Eucalol. Sua filoginia nasceu santa e perfumada.

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