O massacrado Chamberlain

Líderes citam sempre o premiê inglês Neville Chamberlain como exemplo do apaziguamento inútil. Mas já há quem o defenda

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"Já ouvimos essa ilusão tola antes", disse o presidente americano George W. Bush à Knesset, o Parlamento israelense, numa crítica velada às intenções do pré-candidato democrata Barack Obama de negociar com inimigos dos EUA. "É o falso conforto do apaziguamento, repetidamente desacreditado pela história." Bush se referia ao Acordo de Munique, assinado em 1938 entre Alemanha, França e Inglaterra, a última e inútil tentativa de conter Adolf Hitler. Sua má avaliação do acordo, talvez para surpresa do presidente dos EUA, não é compartilhada pela maioria dos historiadores. Mas, entre políticos, Bush não está sozinho. Harry Truman lembrou de Munique quando decidiu pela Guerra da Coréia. John Kennedy falou dos perigos do "apaziguamento" e embarcou soldados para o Vietnã. Bill Clinton envolveu a Otan na Guerra de Kosovo dizendo que não agiria "como Chamberlain" (Neville Chamberlain, primeiro-ministro britânico que em 1938 pegou, pela primeira vez na vida, um avião especialmente para ir à Alemanha de Adolf Hitler tentar evitar a guerra). Com exceção de Jimmy Carter, todos os presidentes dos EUA - incluindo Eisenhower, Johnson, Nixon, Reagan e Bush pai - desde o final da 2ª Guerra citaram em algum momento o episódio para justificar intervenções militares. No discurso político, a tentativa de Chamberlain é uma história com vilão e herói. O vilão é o próprio Chamberlain. O acordo de paz firmado permitiu que o Reich anexasse um terço da Checoslováquia em troca do compromisso de abrir mão de outras ambições territoriais. "Essa questão da Checoslováquia", argumentou ele na Câmara dos Comuns, em Londres, "era a mais perigosa. Agora que nos livramos dela, acredito que poderemos retomar o caminho da sanidade." "Agora, tudo acabou", respondeu ao premiê naquela mesma sessão da Câmara dos Comuns o então deputado Winston Churchill. "Em silêncio, de luto, abandonada, dividida, a Checoslováquia desce à escuridão." Churchill, que é sempre o herói quando contam a história, estava certo. Em 1939, Hitler quebrou o acordo, invadiu a Polônia e fez-se a guerra. Em 1940, Churchill substituiria Chamberlain na liderança do Império Britânico: foi o grande primeiro-ministro que condenou o Acordo de Munique quando este era popular e jamais se deixou enganar pelas intenções de Hitler. É sempre como eco da retórica brilhante de Churchill que até hoje políticos invocam os "perigos do apaziguamento". Entretanto, há no Reino Unido três livros em catálogo com novas opiniões sobre o Acordo de Munique, todos escritos por historiadores. Frank McDonough, autor de Neville Chamberlain, Appeasement and the British Road to War (Chamberlain, Apaziguamento e o Caminho Britânico para a Guerra), e Peter Neville, que escreveu Hitler and Appeasement (Hitler e o Apaziguamento) são ingleses; Stephen Rock, americano, assina Appeasement in Internacional Politics (O Apaziguamento na Política Internacional). Os três defendem a tese de que, dadas as condições em que Chamberlain estava, Munique não foi um mau acordo. Embora ainda exista polêmica, dos anos 1960 para cá cada vez mais historiadores seguem essa linha. Em 1938, o Império Britânico ocupava um quarto do mundo. Nele, dizia-se, "o sol nunca se punha" - embora tamanho já não representasse poder. A Inglaterra saiu da 1ª Grande Guerra empobrecida e com mais problemas para administrar. Podia ter um quarto do mundo, mas não chegava a 10% da capacidade de produção bélica. No mapa que o governo britânico tinha à frente os italianos liderados por Benito Mussolini ameaçavam bloquear o Mar Mediterrâneo e, portanto, o acesso a todo lado oriental do Império Britânico. Enquanto isso, um Japão expansionista ameaçava a Austrália e a Nova Zelândia, com possibilidade de chegar até a Índia. Itália e Japão representavam conflitos que a Inglaterra dificilmente conseguiria impedir, pois ameaçavam diretamente seus domínios, argumentam os historiadores. Uma guerra contra a Alemanha para defender a Checoslováquia, um país que não estava sob a área de influência britânica, seria um desvio de recursos em momento tenso. Mas há mais, além de geopolítica, por trás da decisão de Neville Chamberlain. Uma nova guerra contra a Alemanha era impopular. Entre 1914 e 18, 60 milhões de europeus lutaram naquele que, até então, havia sido o maior conflito da história; 7 milhões morreram; 21 milhões voltaram gravemente feridos ou aleijados. Em 1938, aquelas memórias ainda eram muito vivas. Acordos de apaziguamento raramente são bonitos de ver. Tenta-se evitar uma guerra fazendo ofertas a quem busca o confronto. Em seu estudo, Stephen Rock argumenta que, para que esse tipo de acordo dê certo, são necessárias duas condições. Primeira, a nação que busca a guerra precisa querer, com o conflito, atingir um objetivo pragmático. Segunda, quem propõe o acordo tem que ter condições de oferecer algo que sacie a vontade da nação belicista. A Alemanha de Hitler, que buscava a conquista de terras, da França aos Urais, na Rússia, não tinha um objetivo pragmático; ao contrário, delirava. E ninguém tinha nada para oferecer que pudesse dissuadir o führer. "Quem tomava as decisões em Londres e Paris no final dos anos 1930", escreveu Jeffrey Record, "não sabia que aquelas eram decisões pré-2ª Guerra." Record pertence ao Instituto de Estudos Estratégicos do Exército americano e publicou um ensaio, em 2005, sobre a fatídica decisão de Chamberlain. "Hoje, vemos (o Acordo de) Munique sob o prisma da guerra e do Holocausto, mas, em 1938, ninguém sabia que aquilo aconteceria." Record, assim como o historiador britânico Peter Neville, argumentam que Hitler foi uma exceção e, desde então, não houve um único ditador no mundo que pudesse ser comparado a ele em delírio, poder bélico e capacidade de mobilização popular. Munique foi um fracasso não porque Chamberlain fosse ingênuo mas porque ninguém acreditava que Hitler estivesse falando realmente sério. Parecia um demagogo. Quase ninguém. "A Chamberlain foi oferecida uma opção entre a guerra e a desonra", disse Winston Churchill em um de seus discursos contundentemente sarcásticos. "Ele escolheu a desonra e terá uma guerra de qualquer jeito." Churchill percebeu, e desde cedo. Mas Churchill, argumentam os historiadores, também era uma exceção.

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