Foi Albert Camus quem definiu o século 20 como “o século do medo”. E quem não tem medo, aí já foi Sartre quem disse, não é normal. Já estamos há 22 anos no século 21, e o medo não arreda pé. O medo agora é de outra guerra e outros monstros, de outras catástrofes e até do fim do planeta; medo de contágio, medo da fome, da violência, do fanatismo religioso, do racismo – e, no caso específico do Brasil presente, de mais quatro anos da cleptocaquistocracia bolsonarista ou de um golpe militar. O medo tornou-se uma das mais eficazes armas “invisíveis” da extrema-direita. A coragem é seu mais poderoso antídoto. Oportuníssimo, portanto, o tema do ciclo de conferências da série Mutações deste ano: “Sobre a coragem e outras virtudes”. Como sempre organizado pelo prof. Adauto Novaes, o medo é seu tema subjacente ou ancilar. Coragem e medo são afetos complementares. A primeira não é o oposto do segundo, no máximo, seu corolário. O oposto da coragem é a covardia, que não será focada nas 18 palestras do ciclo (de 6 de junho a 2 de agosto, no Sesc de São Paulo, sempre às 19h), mas apenas referida, en passant, pelo prof. Francis Wolff, a propósito do filme Glória Feita de Sangue, de Stanley Kubrick.
Não existe uma definição unívoca de coragem. Sabe-se que seu étimo, em latim, “coraticum”, deriva de coração, mas em grego tem mais a ver com a virilidade (“andreia”). Aristóteles a considerava a primeira das qualidades humanas, arrimo de todas as outras. Louvada como virtude filosófica em Platão, que a conectou à razão e à dor, como virtude moral por Tomás de Aquino e como virtude política por Maquiavel, desde, pelo menos o século 6.º a.C., a coragem é vista como indispensável ao ato de pensar. “Para pensar é preciso um coração intrépido e corajoso”, pontificou Parmênides, abrindo caminho para a audácia de saber, o “sapere aude” kantiano. Coragem desacompanhada de inteligência pouco ou nada vale, ensinou Sócrates em sua conversa com Protágoras. É preciso pensar diferente, com autonomia, munido de novos saberes, ainda que para executar atividades mais viris do que intelectuais. Sua associação primordial à virilidade (Platão começa a defini-la como a “virtude do guerreiro”) deu-lhe melhor acolhida nas sociedades militares ou militarizadas, nas quais o poder pertence ao exército ou à “nobreza de espada”. Ao passar por essa ilação é que o prof. Wolff vai especular sobre a “boa reputação da coragem e a má reputação da covardia”, livrando a cara dos soldados franceses fuzilados por sua “covardia” no front da 1.ª Guerra. As agressões golpistas à nossa República, os sobreviventes dos campos de extermínio nazistas, Guimarães Rosa, Clarice Lispector e “a coragem de falar das vozes negras” são alguns dos subtemas do novo ciclo de palestras da Artepensamento, outra vez solenemente desdenhado pelos pitbulls da cultura oficial.