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'O modelo único é uma ilusão'

Antropóloga entende ser necessário avaliar as universidades, mas propõe uma mexida maior no ensino brasileiro

Por Monica Manir
Atualização:

Sua paixão é a antropologia, mas de antropóloga típica Eunice Durham tem pouco. Trabalhava ela com movimentos sociais, periferias urbanas e afins quando foi abalroada pelo movimento estudantil na saída da missa de Vladimir Herzog, em 1975. A ânsia de conhecer melhor o estatuto da universidade e propor reformas de conteúdo enviesou sua carreira para pesquisas sobre o ensino superior. Foi quando descobriu que quem pensava educação na época era o pessoal da universidade pública, vista como sistema ideal. Titubeou. Não era assim no resto do mundo. Eunice foi enredada pelo tema, e seu currículo é prova cabal disso. Presidente da Fundação Capes em 1991, membro do Conselho Nacional de Educação do Ministério da Educação de 1997 a 2001 e atual coordenadora científica do Núcleo de Pesquisa de Políticas Públicas da USP, está aposentada há 15 anos, período em que produziu uma barbaridade de obras acadêmicas. Em um dos favos da Colméia da universidade, onde fica o Núcleo, ela recebeu o Aliás para falar sobre o índice classificatório do MEC divulgado nesta semana, que ranqueou 1.448 instituições de ensino superior do País. Eunice tem críticas a fazer, várias, mas ataca de chofre a ilusão do modelo único de ensino, algo com que já se defrontou no início da carreira. Se confessou uma paixão, confessa uma desilusão: a universidade. "As pessoas vêm se aposentando com 55 anos de idade, estão indo embora, a universidade não está deixando que fiquem", lamenta, agitadíssima, uma cigarrilha atrás da outra, a um dia de tirar uma fugaz semana de descanso. UMA COISA É UMA COISA... "No Brasil, ao contrário de outros países, os cursos dados nas universidades e nas escolas isoladas têm teoricamente o mesmo programa e oferecem o mesmo tipo de diploma. Não falo dos centros tecnológicos, falo das faculdades. Algumas são boas, outras ruins. Se os diplomas são iguais, é necessário que se faça uma avaliação em função dos resultados da graduação. Agora, para avaliar as instituições, você também precisa utilizar critérios para a pesquisa e a pós. São coisas independentes, porque o fato de um curso público ter pós-graduação não significa que seja necessariamente melhor do que o curso de uma instituição privada que não tem pós, ou tem uma pós muito incipiente. Esse curso, aliás, pode ser excelente. POR AMOSTRAGEM "O exame por amostragem de alunos é um exame muito difícil de ser usado para diferenciar as instituições porque há algumas nas quais, proporcionalmente, um número muito pequeno de alunos entra na amostra. Isso distorce o resultado, para melhor ou para pior. Não consigo ver, por exemplo, como é feita a amostragem no Enade. O aluno é sorteado e é obrigado a fazer a prova, mas alguns entregam tudo em branco, o que não deviam fazer, não é? Se a faculdade juntasse a nota ao histórico escolar, isso talvez pressionasse os estudantes a realizar a prova. Entretanto, o resultado não deveria contar na média da aprovação, nem deveria ser permitido que um desempenho fraco levasse à reprovação. O Enade é um único exame, e não é suficiente para avaliar o aluno que passou quatro anos na faculdade e, de repente, vai mal justamente nele. INICIANTES E FINALIZANTES "O Enade tem exames para iniciantes e finalizantes, com testes gerais e específicos da carreira. Quando você analisa tudo num ano só, fico sem saber o que está sendo medido. E, se você vai querer, e eu acho necessário, uma pesquisa sobre valor agregado, se a instituição recebeu bons alunos e formou medíocres, ela é muito pior do que uma que recebeu alunos muito ruins e formou medíocres. Mas esse exame dificilmente indica isso. Outra coisa: sou uma pessoa muito crítica sobre o sistema de ensino superior no Brasil em geral. Eu acho que ele é ruim, mas não acredito que o aluno saia pior do que entrou, mesmo nas escolas ruins. Se os alunos que estão entrando têm uma média boa em português, e os alunos que estão saindo têm uma média um pouco menor, será que foi porque a escola piorou o aluno nesse período? CURSINHO PRÉ-ENADE? "Na época do Provão, algumas instituições que tiraram nota muito baixa começaram a elaborar cursinhos para preparar os alunos para a prova. Isso foi considerado péssimo. Eu não considero péssimo, não. Acho que, se você faz uma revisão e melhora um pouco a nota do aluno, o aluno ganhou. Em segundo lugar, as escolas foram levadas a fazer isso porque perderam matrículas. As instituições bem classificadas ganharam. E aí você tem um sistema de controle para alguma coisa que o setor privado entende: o lucro. Isso influi negativa ou positivamente nas finanças da universidade sem que você precise ir lá verificar as contas. É muito difícil fiscalizar todas elas. Seria necessário um exército de avaliadores para isso e, mesmo que peguemos as piores, esse esforço seria imenso. Controlar o mercado burocraticamente é muito difícil. Com o exame, alterou-se um critério no mercado. OPERAÇÃO ?LIMPA-LIXO? "As avaliações também servem de indicador. O exame é muito bom para pressionar os cursos com pontuações mais baixas. É possível separar os piores e mandar alguém lá verificar, numa operação ?limpa-lixo?. Pode-se descobrir, por exemplo, que em 10% deles a avaliação foi errada, mas que a maioria deles é realmente ruim. O problema é que, como a avaliação é publicada antes da checagem in loco, pode haver prejuízos substanciais para uma ou outra instituição se o exame não foi bem-feito. Agora mesmo, avaliamos um pedido de recredenciamento de uma faculdade municipal. Quando foi avaliada no Provão tinha C, um pouquinho de A, mas tinha B também, com poucos cursos ruins. O profissional que foi lá considerou que a instituição está melhorando, bastante até. Ela recebeu uma nota baixíssima no Enade, mais baixa do que outras que a gente sabe que não são boas instituições em função de avaliações feitas. Não pode ir fazendo e publicando o resultado assim adoidado no jornal, mesmo porque a avaliação diz respeito à qualidade de graduação apenas. A instituição pode ter outras coisas. ASPIRINA FALSA "Não acho que o sistema de avaliação deva incorporar análise de gestão, finanças, sustentabilidade, como já se afirmou. Acho que isso é uma responsabilidade do poder público com as instituições públicas, que usam dinheiro público. Não vejo por que o governo deveria se empenhar em fazer uma avaliação das finanças de uma instituição privada que está obtendo lucro no mercado. Você tem de avaliar se o serviço que ela vende cumpre as finalidades a que se propõe, se o produto é bom ou não, se é uma aspirina que é realmente uma aspirina ou se é uma aspirina falsificada. MIGRAÇÃO PARA A PARTICULAR "No Brasil, 48% das universidades, 96% dos centros universitários e 95% de outras categorias são particulares. Em São Paulo, 79% das universidades, 93% dos centros universitários e 94% dos outros também o são. A grande maioria dos cursos de pós está nas universidades públicas, especialmente em São Paulo. Quando se insiste em que as privadas tenham um número alto de doutores no corpo docente para não perder a classificação como universidade, elas vão procurar doutores. Ocorre que essa exigência foi feita no mesmo momento em que se alterou o regime de aposentadoria nas universidades públicas. Permitiram a professores universitários se aposentarem com 30 anos de serviço e professoras, com 25. No auge da carreira, em torno dos 50 anos, todo mundo achou de se aposentar. O que fizeram as universidades privadas? Contrataram. Elas não têm núcleo de pesquisa, de modo que isso não promoveu um aumento de qualidade na graduação, mas aumentou seu número de doutores. MAIS PROFESSORES "Na Europa, pelo menos em termos de eficiência, existe uma pressão para colocarem mais estudantes. No Brasil, todo o dinheiro das universidades, com exceção das paulistas, vem do MEC. E essa folha de pagamento varia em função do número de professores. Então, as universidades pedem mais deles porque, se aumentarem o número de alunos, não recebem mais dinheiro. Fiz um trabalho sobre a variação no número de professores e de alunos entre as federais e confirmei que ter mais professores não significa que a instituição seja melhor. Com o tempo integral é a mesma coisa. Se pegar um Estado como Roraima, com quase 100% de tempo integral e um número grande de professores, não há quase ninguém fazendo pesquisa. A ILUSÃO BRASILEIRA "O nível de renda dos alunos que estão no público e no privado varia pouco. As públicas têm um pouco mais de pobres e um pouco menos de ricos, mas o grosso da população de ambas é a classe média. O desafio maior é criar cursos no sistema público para atender à demanda de massa. Acho que existe um engano básico no nosso sistema que é a ilusão do modelo único, de que o ensino tem de ser igual para todo mundo e que todos têm de ir para a universidade e se tornar pesquisador ou professor. Isso não acontece em nenhum lugar do mundo. A maior parte dos jovens não gosta de estudar, já reparou? Querem um curso que lhes permita ganhar dinheiro. É a cultura do diploma. Qual é o curso mais procurado aqui, o que tem mais vagas, concentradas no setor privado? Administração de empresas, que serve para uma porção de coisas. Se você está empregado num banco, com o curso pode chegar a gerente. Se está num supermercado, pode obter posição melhor. Você não precisa de uma universidade com grandes pesquisas para fazer um bom curso de administração. O mesmo ocorre com a área de computação. É muito importante que haja pessoas com essa qualificação, mas são poucas. ?COLLEGES? COMUNITÁRIOS "O único país que resolveu bem isso foram os EUA, onde tudo é pago, inclusive o ensino público. As universidades de lá estão cobrando cada vez mais, o que está virando um problema para a classe média que reivindica acesso ao ensino superior. Para a gente de família pobre, de pais pouco escolarizados, a maior parte imigrantes, eles criaram os colleges comunitários, nos quais não há pós, mas por meio dos quais se coloca no mercado uma população que sabe ler, escrever, fazer contas, conhece algo do mundo, que é na verdade do que o setor terciário precisa. Os colleges, por legislação, são obrigados a aceitar todo mundo. Acho que os nossos governos federal e estadual estão mantendo um tipo de instituição que têm de manter: a universidade de pesquisa. Mas precisamos de outros tipos que atendam a essa demanda no ensino público, que hoje virou particular. O ensino público só cria universidades. E, toda vez que cria universidades, ela tem de ser igual à USP. Não precisa! Para formar boa parte da nossa mão-de-obra, precisamos de um ensino de terceiro grau, mas não necessariamente ligado à universidade. Porque, enquanto estiver atrelado a esse modelo, o dinheiro do Estado não vai dar."

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