O nome da marcha

Acampada havia seis anos, Maria Cícera esperava um lote do governo. Foi atropelada pelos fatos

PUBLICIDADE

Por Monica Manir
Atualização:

"Se o campo não planta, a cidade não janta." O bordão alimentava o ânimo dos sem-terra no protesto de quarta-feira em frente do Tribunal Regional Federal, na Av. Paulista. "Pátria livre, venceremos" e "A burguesia não vai resistir" também estavam no cardápio. Imprevisível foi ouvir "Cumprimos mais uma etapa da nossa Marcha Maria Cícera Neves". Não se tratava da Jornada Nacional de Lutas por Reforma Agrária?

 

PUBLICIDADE

Tratava-se. Trata-se ainda. Jornada de Lutas é o nome da mobilização do MST e da Via Campesina que espalha protestos pelo Brasil batendo em três estacas: descontingenciamento e ampliação dos recursos para a reforma agrária; revisão dos índices de produtividade; e assentamento de todas as famílias acampadas. Maria Cícera Neves rotula a marcha paulista, que partiu de Campinas no dia 6 passado e chegou à capital quatro dias depois. Cícera apenas saiu. Um acidente a tirou instantaneamente do caminho.

 

Maria Cícera era de Martinópolis, município do Oeste paulista que brotou de 10 mil alqueires da Fazenda Montalvão desmembrados por um português. João Gomes Martins arruou o pedaço e mandou avisar que os preços eram convidativos e as prestações, suaves. Pela estrada de ferro chegaram levas de compradores. Quase 90 anos depois, Maria Cícera não viu sombra de terra. A pensão de viúva era pífia e não havia herança territorial a deixar para os cinco filhos e os sete netos.

 

Largou todos para trás, incluindo o amásio, e foi acampar na região do Pontal do Paranapanema – não atrás de divertimento, mas de um cadastro do Incra, a fim de ser assentada. Ali levantou sua lona em 2003 e dali saiu em novembro de 2008, de enxada abanando, sob a promessa de que na regional de Iaras as coisas estavam indo mais rápido. "Prometeram que em 60 dias teriam terra pra nós", diz Edson Silveira, vizinho de lona.

 

Acocorou-se na Fazenda Agrocentro, de 1.680 hectares, localizada na região de Agudos, também a oeste da capital. O acampamento Rosa Luxemburgo tem 183 barracos e há quem o chame, na cidade, de Rosa Muricy. A terra já teria sido negociada pelo Incra, porém falta o projeto de assentamento. Uma escola 300 metros adiante na estrada batida também leva o nome da revolucionária polonesa que, em 1906, publicou Greve de Massas, Partido e Sindicato, no qual Rosa diz: "A greve de massas nem é ‘fabricada’ artificialmente nem ‘decidida’ ou ‘difundida’ no éter imaterial e abstrato, mas é tão somente um fenômeno histórico, resultante de uma situação social a partir de uma necessidade histórica". A escola foi erguida para dar aulas de agroecologia e agronomia. Está quieta no momento.

 

Nos moldes dos outros acampados a sua volta, a rotina de Maria Cícera consistia em cuidar do seu quintal, onde se esparramam uma rama de abóbora-de-pescoço, uma touceira de almeirão branco e outra de roxo, algumas mudas secas de caju e uma farmácia caseira à base de boldo-do-chile, boldo-de-jardim, hortelã e poejo. Na frente da casa, Baixinha (seu apelido) plantou palmas e cravos-de-defunto amarelos. Sob a garagem jaz uma Belina branca, cujo motor foi desmontado pelo sobrinho Carlos, que vive num puxadinho do barraco. Seis varas de pescar, ajeitadas sob a lona preta, e dois chapéus de palha denunciam o único vício da tia. Baixinha tomava banho de canequinha, com a água encanada da represa, e seu banheiro era uma latrina adaptada em "v", que ia dar na fossa. Cozinhava para o dia no fogão a lenha, já que geladeira não há. Na despensa, quase nenhum sinal da última cesta básica – recebem duas por ano. Uma lâmpada minúscula, movida a energia solar da placa sobre o teto, a ajudava a ler a Bíblia. Até possuía uma televisão, que não pegava. Pouquíssimos têm TV ou rádio no Rosa Luxemburgo, donde não sabiam direito o que ocorria na marcha.

 

Publicidade

A notícia do acidente chegou pelo celular de alguém. Diziam que Maria Cícera tinha sido atropelada por um carro no primeiro trecho da marcha. Terezinha Flausino Jorge, a quarta na hierarquia das amigas, comentou: "Bem que ela não queria ir". Doída por causa de uma bursite no ombro, Maria Cícera saiu de tipoia, uma faixa encardida de enrolar machucado. Ao contrário do que aconteceu nas 12 "lutas" anteriores, em que aceitou ir no caminhão com os homens, preferiu o ônibus que leva as crianças e as mulheres. Ainda assim, quando chegaram a Campinas não quis ficar na ciranda, onde cuidaria dos pequenos. Abriu a sombrinha azul e botou o pé no "encostamento" da Anhanguera a partir das 6h30. Destino: Vinhedo, 22 km adiante.

 

O sol ardia a pino quando os marchantes, cerca de 1.500, vindos das regionais da Grande São Paulo, Campinas, Ribeirão Preto, Pontal, Itapeva, Promissão, Andradina, Iaras, Sorocaba e Vale do Paraíba, passaram pelo pedágio. Os sem-terra se agrupam por regionais também na estrada, e Iaras era a última. Todos ouviram aplausos, mas também muitos "vão trabalhar, bando de vagabundos". Carregado de leve com plástico prensado, o caminhão da Transportadora Zapellini, com placas de Lage (SC), paralelou com a passeata. Ao volante, Marcos Santos Wolinge, de 22 anos, há três meses na empresa, diz ter visto as bandeiras vermelhas e reduzido a marcha, digo, a própria. Mas "dois desgraçados de uns motoqueiro", um na frente e outro na garupa, teriam cruzado nas suas ventas. Marcos virou o volante para a direita, quis voltar, "mas o caminhão não ajudou", apesar dos freios em ordem. Acionou a buzina e viu que abriram um espaço na manifestação. Por ali passou, sem se dar conta de que levava sob as rodas a sombrinha de Maria Cícera. Baixinha morreu na hora.

 

Francisca Angela dos Santos Silva, colega de Maria Cícera, também foi pega pelo caminhão e jogada do outro lado do guard rail. Com luxação na coluna e hematomas nas pernas, saiu da Santa Casa de Vinhedo no dia seguinte. O corpo de Maria Cícera foi trasladado para Martinópolis, seguido pelo ônibus com o grupo de Iaras. "A família entendeu que não tivemos culpa nenhuma", enfatizou Lega, um dos coordenadores do Rosa Luxemburgo. Os parentes ficaram, inclusive, de mandar uma foto dela, que ninguém tem registro fotográfico algum no acampamento, para botar num quadro com as cores do movimento. Marcos Wolinge, que levou socos e pontapés dos marchantes quando saiu da cabine, também diz não ter responsabilidade no caso: "Tu não vai andar numa via rápida, vai?" No final, acabou se abrigando no carro da polícia e não chegou a ver Maria Cícera no asfalto. "Não sei nada sobre a mulher, até queria saber quem era." Equilibrada sobre o tanque, sob a lona escaldante, a gata de Baixinha pede comida. É simplesmente gata. Os vizinhos não têm ideia do nome dela.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.