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Coluna quinzenal do jornalista e escritor Sérgio Augusto sobre literatura

Opinião|O novo perigo amarelo

Brinquedos à la Chucky, pneus defeituosos cremes dentais envenenados... e as calamidades 'made in China'

Atualização:

Um novo flagelo azucrina o planeta: a sinosite. Não confundir com sinusite. A sinosite, como a Lua do Campos de Carvalho, vem da Ásia, é um transtorno "made in China". Que, aliás, são muitos. E na certa não chegaram ao fim com o recall dos brinquedos da Mattel.   Os insalubres brinquedos fabricados na China ainda estavam sendo recolhidos quando, na quinta-feira, o New York Times anunciou que um novo vírus suíno já se espalhara por 25 províncias chinesas, sem que se saiba quantos dos 500 milhões de porcos do país foram afetados. A inflação foi: subiu 4,4%. Dizia-se, muito antigamente, que "Da Ásia veio a luz do mundo", de preferência em latim: "Ex oriente lux". Ainda há quem acredite nesse adágio, com base no milagre econômico chinês, que há três décadas embasbaca o mundo e este ano já registrou outro recorde de crescimento: 11,9%, apenas no segundo trimestre.   Quem bem conhece as condições em que esse interminável boom vem se processando há de concordar que já está mais do que na hora de se trocar a luz pela calamidade. Ou melhor, calamidades. Surtos de gripes pandêmicas (a asiática, em 1957, a de Hong Kong, em 1968, a aviária, em 1997, e a Síndrome Respiratória Aguda Severa, vulgo SARS, em 2003); alimentos infectados por bactérias e elementos químicos letais (no início deste ano, milhares de cães e gatos morreram de falência renal, nos EUA, porque duas fábricas chinesas acrescentaram aos seus produtos um componente, melamina, usado para fabricar plásticos).   Pneus e produtos eletrônicos defeituosos; cremes dentais envenenados; brinquedos que poderiam entrar na próxima aventura cinematográfica de Chucky; bijuterias tão contaminadas de chumbo quanto os brinquedos da Mattel; atentados constantes à liberdade de expressão; exploração aviltante da mão-de-obra; agressões contínuas ao meio ambiente.   Autoritarismo Sai "Ex oriente luz", entra "Ex oriente calamitas". E nem tocamos nos estragos causados pela Revolução Cultural maoísta. O cáiser Guilherme 2º deve estar dando cambalhotas na tumba. "Perigo amarelo", a expressão por ele inventada há 112 anos, voltou à moda, em contexto diverso. Durante séculos explorada, impiedosamente, pelas potências ocidentais (só a Inglaterra lhe fez duas guerras por causa do ópio), a China virou, enfim, o que lhe imputavam.   Muitos daqueles que, como eu, cresceram olhando-a com os preconceituosos temores inoculados pelo cinema americano, pelos gibis e pela baixa literatura de Sax Rohmer, dispensando, pois, mais atenção ao maléfico & traiçoeiro (Fu Manchu) do que ao edificante (Pearl Buck, Charlie Chan) e ao filosofante (Confúcio, Lin Yutang), não se espantam tanto com o que há tempos os inventores da pólvora, do macarrão, do nanquim e do chop suey vêm aprontando. Sobretudo depois que reinventaram o capitalismo selvagem. Que outro adjetivo aplicar a uma prática econômica tão cheia de vícios, mantida a ferro e fogo por um regime autoritário, que prende e executa jornalistas e dissidentes. Os chineses copiam e pirarateiam quase tudo, utilizam-se de mão-de-obra escrava e têm um dos mais incompetentes sistemas de controle de qualidade.   Viciaram-se em terceirizar todo e qualquer serviço, o que explica por que os brinquedos da americana Mattel, manufaturados pela chinesa Early Light Industrial Company, foram pintados pela Hong Li Da, que, em vez de aplicar a tinta recomendada pela Early Light, usou material "chumbado" de uma terceira fábrica, a Lee Der Industrial. Tudo para economizar custos e atiçar mais lenha na superaquecida economia chinesa. Um dos donos da Lee Der enforcou-se, antes que o governo repetisse com ele o que fizera com Zheng Xiaoyu, a autoridade que vigiava a qualidade dos alimentos e remédios, executado mês passado por ter aceito US$ 850 mil de suborno de oito empresas interessadas em sua ''''vista grossa''''. Nem depois da execução de Xiaoyu, a vigilância sanitária melhorou.   Custo do crescimento Se entrarmos firme no campo da poluição, toparemos com dados estarrecedores. Mais de 10% das terras cultiváveis da China estão contaminadas por metais pesados, como cádmio, chumbo e cobre. Tanques de criação de camarões e lampreias borbulham de antibióticos e aditivos químicos. Mês passado, o Financial Times revelou que o governo chinês pressionara o Banco Mundial para que este cortasse quase um terço de um relatório sobre poluição na China e as 750 mil pessoas que teriam morrido "envenenadas" pelo ar que por lá se respira.   Domingo passado, um jornalista de televisão foi multado e condenado a um ano de prisão por ter, supostamente, inventado que fabricantes de jiaozis (aqueles deliciosos bolinhos que os americanos chamam de dumpling) os estavam recheando com papelão. Pelo visto, verdade; ou as autoridades não teriam se recusado a apurar a denúncia. As potências ocidentais protestam, acionam a Organização Mundial do Comércio, ameaçam daqui, ameaçam dali, mas nada logram de produtivo. Foi-se o tempo em que a expressão "negócio da China" tinha uma conotação positiva. Só continua tendo para quem aceita jogar o mahjong neocapitalista & novo-rico dos chineses.   Fechando os olhos e apertando o nariz. Pois também a corrupção atingiu dimensões épicas na terra da Gong Li. Ano passado, a comissão de disciplina interna do Partido Comunista investigou mais de 147 mil casos de corrupção, a Suprema Corte anunciou a condenação de mais de 10 mil funcionários públicos, e houve até algumas execuções. Medidas promissoras; se é que tudo não passou de jogo de cena, já de olho nas Olimpíadas de 2008.   Importadores Parte da culpa pelo escândalo dos brinquedos da Mattel deve ser compartilhada pelos países que os importaram sem submetê-los a uma inspeção rigososa.   Até o Wall Street Journal já reconheceu a co-responsabilidade dos EUA nessa história. Doravante as empresas americanas estabelecidas na China terão de gastar mais por um controle apurado dos produtos que lá fabricam por não disporem, em território americano, de uma massa trabalhadora tão numerosa, mal-assalariada e reprimida, nem de fábricas com tamanha liberdade para encher de gases a atmosfera. Maior controle lá e cá. Não sei qual dos dois impõe mais dificuldades. Nos EUA, a qualidade da inspeção baixou a níveis quase paraguaios, nos últimos seis anos.   Para reduzir ao máximo o dedo regulador do governo, Bush condenou à paralisia o Food and Drug Administration e a Consumer Product Safety Commission, os dois filtros protetores dos consumidores, demitindo, do primeiro, 200 cientistas especializados em alimentos e, do segundo, 700 inspetores.   Assim, além de espinafres contaminados com E. coli e pasta de amendoim com salmonela, nenhum vindo da China, diga-se, outros venenos poderão entrar tranqüilamente nas geladeiras americanas. Pena que o economista Milton Friedman não esteja mais entre nós para ingerir um desses petiscos. Afinal, foi ele quem há tempos sugeriu que se acabassem com órgãos como o FDA. O papa do monetarismo acreditava, fanaticamente, na auto-regulação das empresas privadas. Merecia um bonequinho da Mattel com o seu nome. TERÇA, 14 DE AGOSTO Barbie e Polly, as vilãs da hora A Mattel anuncia recall de 21,8 milhões de brinquedos, 850 mil deles no Brasil. Os produtos contêm ímãs que podem ser engolidos pelas crianças ou tinta com concentrações perigosas de chumbo. A maior parte dos brinquedos foi fabricada na China.

Opinião por Sérgio Augusto
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