O ‘ômicron’ que a Itália produziu nos anos 1960 era uma obra do intelecto

Produzido em 1963, filme ‘Omicron’ teve direção de Ugo Gregoretti

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Por Sérgio Augusto
Atualização:

Pensei que ninguém ainda se lembrasse de Angelo Trabucco. 

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Não, não é ou era, apesar do nome, um escritor italiano (você provavelmente o confundiu com Antonio Tabucchi), mas um operário de fábrica que teve seu corpo invadido por um ET enviado até nós para sondar as possibilidades de vida na Terra. 

Assim que surgiu a homônima variante da covid-19, mais gente do que eu esperava referiu-se, nas internet, ao filme de Ugo Gregoretti (1930-2019) e seu bizarro personagem, interpretado por Renato Salvatori. Já houve, faz tempo, um videojogo batizado de Ômicron, mas o filme, entre nós lançado com o título Omicron, o Agente do Espaço em 1964, foi o que ficou na memória das pessoas. 

Renato Salvatori em cena do filme 'Omicron', de 1963, dirigido por Ugo Gregoretti 

A atual variante era para se chamar Nu ou Xi. Consoante sua política de evitar embaraços com homônimos e homófonos e reavivar preconceitos estigmatizantes, a OMS pulou aquelas duas letras (Xi, afinal, é o nome do presidente chinês Xi Jinping), indo direto para 15ª do alfabeto grego. Já fomos apresentados às variantes Alfa e Delta, mas tenho dúvidas se, pelo motivo acima exposto, teremos um variante Ômega, para evitar problemas com a fábrica de relógios, a que sempre, aliás, nos referimos paroxitonamente: “Oméga”. Como Ômicron ainda era “Omicrón” quando o filme estreou nos cinemas daqui.

Comédia fantacientífica com tintura política e explícita inclinação esquerdista, nasceu em parte na imaginação de Rossellini, mentor intelectual de Gregoretti, que desde meados da década de 1950 ambicionava retratar de forma original as relações entre a classe trabalhadora e a sociedade de consumo na Itália do pós-guerra, a partir das análises sociológicas de Vance Packard, cuja obra Nova Técnica de Convencer, Estratégia do Desperdício foi uma coqueluche no mundo inteiro. 

Gregoretti, egresso do telejornalismo, entusiasmara a crítica, inclusive a nossa, com o híbrido documentário Anjos Modernos (I Nuovi Angeli), cativante mirada sobre as diferenças sociais e comportamentais entre os jovens de diversas regiões italianas que facilitou sua associação ao produtor de maior prestígio do país na época, Franco Cristaldi. O cineasta reconheceu-o, publicamente, como co-autor de Ômicron (tem completo e legendado no YouTube), tão cúmplice foi sua colaboração durante as filmagens.

Das coisas espaventosas que Trabucco-Ômicron faz com seus superpoderes (fumar cigarro de uma tragada só em dois ou três segundos, trabalhar incansavelmente como um autômato etc), a que mais se fixou na memória da plateia foi a velocidade quase supersônica de sua “leitura dinâmica”. Pudera. Ele consegue ler a Odisseia e A Divina Comédia não de uma sentada, mas de uma folheada só. 

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A missão de Ômicron fracassa porque há 60 anos, embora lentos na leitura, tínhamos virtudes inassimiláveis pelos alienígenas. Hoje, eles nem sequer cogitariam visitar nosso pestilento planeta. E a OMS teria de se virar com outra letra grega para denominar a variante da vez

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