O país que Deng criou

Ditadura socialista de mercado parecia contraditório, mas produziu o maior crescimento da história

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Por Flavia Tavares e
Atualização:

A China, sugere um velho provérbio, permanece como sempre esteve. É o império imóvel, imutável, que carrega uma tradição cuja história se conta em milênios. Mas, com a discrição que cabe ao Oriente, algo mudou no país que agora sediará as Olimpíada. A mesma ética confucionista, que prega educação intensa e rígida obediência à hierarquia, continua de pé. Mas driblou o misticismo taoísta para abraçar a ciência e tecnologia do Ocidente. Esta união de Oriente e Ocidente promove o mais estupendo crescimento econômico da história. A opinião é de Merle Goldman, veterana professora de história chinesa da Universidade Harvard, entrevistada do Aliás. Ela esteve nas primeiras visitas de acadêmicos ao Império do Meio, em 1974, quando conheceu o sucessor de Mao Tsé-tung, Deng Xiaoping. "A China atual é fruto dessa invenção de Deng que foi o socialismo de livre mercado", ela diz. Uma contradição em termos, talvez. Mas a China vem-se mostrando capaz de quebrar todas as regras estabelecidas. Que abertura econômica, por exemplo, leva inevitavelmente à democracia é um mantra ainda repetido pelos liberais. Não na China. Qualquer mudança no sistema econômico necessariamente acarreta mudança do sistema político, sugeria Karl Marx. Não lá. Em 1989, os estudantes tomaram a Praça da Paz Celestial para pedir liberdade. O governo caiu em cima. E os estudantes hoje são nacionalistas. Há, no entanto, um risco, alerta a professora: a cada ano, seja pobre, seja rico, o chinês está melhor do que esteve no ano anterior. Se a vida piorar, não há Confúcio que sustente a obediência hierárquica. Qual será o impacto dos Jogos Olímpicos na China? Tanto a cúpula do poder quanto a população vêem as Olimpíadas como uma chance de mostrar um país moderno ao mundo. Estão se esforçando para provar que mudaram. A questão é se vão conseguir disfarçar os problemas. Se não conseguirem, não sei o que acontecerá. Ficarão na defensiva? Certamente. E muito desapontados. Os chineses estão trabalhando duro para que não aconteça nenhum problema, como os que poderiam ser causados pela poluição, por exemplo. O governo tem falado até em proibir todos os carros de circular em alguns dias. Isso prova o tipo de esforço que estão dispostos a fazer para que tudo dê certo. É prova também de totalitarismo. Sim, mas eles são totalitários, nem tentam disfarçar. A questão é que a população parece concordar com as medidas drásticas em nome da vontade de provar que o país evoluiu. E realmente evoluiu? As críticas constantes são injustas? Há mais abertura, hoje, do que no período do Mao Tsé-tung, que durou até 1976. Há mais liberdade pessoal, acadêmica e artística. O que não existe é liberdade política ou de imprensa. Nisso, as críticas procedem. Em momentos recentes, como o do grande terremoto, o governo flertou com a transparência. Há ensaios de abertura? Eles permitiram que mais informação circulasse, sim. Mas no momento em que começaram a questionar a qualidade da construção das escolas e sugerir casos de corrupção, os críticos foram imediatamente calados. Os chineses estão mais nacionalistas do que eram? O nacionalismo está substituindo o papel que era ocupado pelo marxismo-leninismo na sociedade chinesa. Com a abertura econômica, ficou um vácuo ideológico que o nacionalismo preenche. O sentimento ajuda na sustentação do regime e é especialmente forte entre os mais jovens. A princípio, isso interessa ao governo. Mas pode ser perigoso. Se a população começa a ficar insatisfeita, pode se voltar contra os governantes. A classe média, que costuma cobrar liberdades, não protesta na China. Por quê? Ela foi cooptada pelo Partido Comunista. Os pequenos empresários são convocados para fazer parte da estrutura do PC, o que lhes traz muitas vantagens: conseguem comprar imóveis, têm acesso a uma melhor distribuição de seus produtos. A questão é se algo como a revolta dos estudantes na Praça da Paz Celestial (Tiananmen) pode acontecer de novo. Com os jovens apoiando o governo, me parece que não a curto prazo. Então a democracia não virá? Talvez a próxima geração de líderes proponha mais abertura, porque haverá pessoas que estudaram no exterior, com uma visão mais plural. A geração atual é ligada à tradição estabelecida por Deng Xiaoping (criador do socialismo de livre mercado, comandou o país de 1976 a 97). Nem o aumento no preço dos alimentos ameaça o regime chinês? Há preocupação, mas desde os anos 70 não se vê fome na China como houve antes. Enquanto a economia crescer, o regime permanecerá estável. Esse é o modelo que Deng sonhou para o país: crescimento econômico num regime ditatorial. A idéia de que uma economia de mercado teria de necessariamente ser acompanhada de um regime democrático não se aplica? É irônico, não? O próprio Marx dizia que quando há mudança na estrutura econômica deve haver mudança na estrutura política. Na China, não acontece. O regime atual pode não ser como o de Mao Tsé-tung, em que se determinava o que a pessoa podia dizer, vestir, ler. Mas ainda é uma ditadura. Os atuais governantes chineses compreendem as pressões que outros países fazem quanto a liberdades e ao controle da poluição? Bom, eles foram educados na China e são engenheiros. Sua experiência no exterior é limitada. Não são cosmopolitas. Eles compreendem as exigências com relação ao meio ambiente, porque isso afeta diretamente tanto sua saúde quanto sua reputação. O que não compreendem são as exigências quanto à liberdade de expressão e política. Os chineses sentem que conquistaram avanços importantes nos últimos 30 anos e merecem elogios, não críticas. Economicamente, de fato, houve muitos avanços. O cidadão chinês médio tem uma qualidade de vida melhor atualmente. A China está substituindo a influência da União Soviética na Ásia. Quais as diferenças entre as duas? A China tem população maior e cresce mais intensamente. A URSS era mais poderosa militarmente. A questão é se a China quer tanto poder. Não é claro. Eles estão aumentando os investimentos militares, mas não sei aonde querem chegar. A senhora mencionou que os chineses querem passar uma imagem de avanço. Mas continuam a apoiar governos como o do Sudão. Por quê? Eles querem boa imagem, mas têm interesses a defender. No caso do Sudão, o país é uma fonte de petróleo e a China está desesperada por todo tipo de recursos. A influência exercida na África é fruto disso. A China é, de fato, imperialista? Imperialismo pressupõe uma invasão territorial e a China não quer colonizar ninguém. Ela se expandiu pela região, mas tem Rússia e Índia como vizinhos. Podemos dizer que os dois países detêm os ímpetos da China. O imperialismo chinês é mais ideológico, na tentativa de conquistar aliados. A China tem de ser mais agressiva do que os outros nas negociações internacionais por ter uma demanda interna tão grande. E eles já estabeleceram parcerias importantes. Petróleo e gás, por exemplo, vêm da Rússia. O êxodo rural chinês pode gerar uma falta de alimentos crítica? Cerca de 150 milhões de pessoas deixaram o campo e foram para as cidades. Mas esse não é o problema. As terras são divididas em pequenos lotes, por isso é complicado desenvolver agricultura de escala. Por outro lado, os migrantes mandam dinheiro para suas famílias no campo e movimentam a economia do interior. Como estão as relações entre China e Hong Kong? E com Taiwan? As relações com Hong Kong estão boas. A China indica o governante, mas não interfere tanto, a mídia tem certa liberdade. Em Taiwan, o presidente Ma Ying-jeou tem uma relação melhor com a China do que seu antecessor. Estão negociando mais e até os vôos comerciais entre os dois países foram retomados. Os jovens chineses são nacionalistas, buscam as tradições, mas são obrigados a aprender inglês e a interagir com pessoas de outros países. Como lidam com isso? Os líderes chineses estão tentando promover os valores de Confúcio. Hoje, os pais e avós só se preocupam com educação, educação e educação dos jovens. Valorizam a autoridade e hierarquia. Esse espírito confucionista vem da tradição, mas é também modernizador. Mas esses não são os mesmos valores do país há dois milênios? Há uma diferença: agora eles aplicam o confucionismo à ciência e tecnologia, o que permite que a sociedade se modernize. O misticismo taoísta saiu de cena? Não, o taoísmo e o budismo permanecem. Só que os valores confucionistas estão ainda mais fortes. O contato que a juventude chinesa vai ter com outras culturas durante as Olimpíadas pode afetar seu comportamento? Olha, o contato vai ser superficial. Quando os chineses vêm ao Ocidente, aí sim há um grande impacto, principalmente quando eles voltam ao seu país. Por muitos anos, o governo chinês conseguiu impor o controle de natalidade. Por quanto tempo mais ele vai conseguir? Eles já começaram a permitir mais de um filho por família nas áreas rurais, porque a terra fica para o filho homem e as meninas se casam e se tornam parte de outra família. Então, se o primeiro filho é uma menina, eles permitem que o casal tenha outro. Se o segundo também for menina, aí não pode tentar mais. E nas grandes cidades? A população urbana aceitou o controle rigoroso de natalidade. Um fenômeno interessante: as filhas únicas de famílias urbanas são extraordinárias. Em Harvard, no ano passado, foram admitidas quatro garotas chinesas no departamento de física. Eram todas filhas únicas de famílias de classe baixa em grandes cidades. Elas estudaram inglês, violino... Tudo em escolas públicas. Isso prova que pelo menos algumas escolas públicas devem ser boas. Há uma nova classe intelectual na China? Em meu último livro, citei um novo movimento de intelectuais que ajudam pessoas comuns, camponeses e trabalhadores, em suas demandas. São advogados de defesa e jornalistas, pessoas de classe média que assumem posições políticas independentes. São bem organizados e têm acesso a revistas que publicam suas idéias. Não foram presos ainda, mas enfrentam muita dificuldade. Quando não conseguem publicar seus artigos nos jornais chineses, fazem isso na mídia de Hong Kong e os textos acabam entrando na China depois. Eles são lidos apenas por outros intelectuais, mas dão consultoria a camponeses que foram presos, por exemplo, ou que querem organizar um protesto. Não estão totalmente isolados do povo. Esse grupo tem chance de conseguir mudar alguma coisa? O problema a enfrentar é justamente o nacionalismo, especialmente entre os jovens. Esses intelectuais estão com seus 40 ou 50 anos. As novas gerações endossam o governo e talvez não queiram questioná-lo. Talvez os jovens que tenham estudado fora consigam enxergar uma outra China e lutar por ela. Quando as novas gerações chegarão ao poder? Somente quando a atual se aposentar. E os atuais governantes ainda podem se manter no poder por dois mandatos de cinco anos. Pelo menos por mais uma década eles estarão lá. SEGUNDA, 28 DE JULHO O insustentável peso do ar As medidas radicais adotadas por Pequim desde o dia 20 não são suficientes para reduzir a poluição a patamares aceitáveis. Autoridades informaram que adotarão medidas adicionais se a poluição não ceder até os jogos. Não foram dados mais detalhes. CONTRADIÇÃO "A população concorda com medidas drásticas, porque quer provar que o país evoluiu" PERMANÊNCIA "Enquanto a economia estiver crescendo, o regime ditatorial continuará estável"

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