'O patriarcado não voltará'

Nem com exortações do papa à família tradicional, nem com investidas islâmicas, aposta sociólogo

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Foram inúmeras as vezes em que Bento XVI, em seus quase três anos de papado, alertou para uma crise de valores familiares que tocaria especialmente a Europa. Fez isso de novo esta semana, durante a oração do Ângelus, na Praça de São Pedro. No Irã, no Afeganistão, em todo o Oriente Médio, islâmicos radicais acusam o Ocidente de viver um processo de degradação moral, que leva à dissolução dos lares. Afinal, o que acontece com a família nessa parte do mundo onde existe a liberdade dos costumes? Tudo "culpa" da revolução sexual dos anos 60? Para o sueco Göran Therborn, professor de Sociologia da Universidade de Cambridge, no Reino Unido, a nova ordem familiar no Ocidente foi determinada por um fator para o qual pouco se atina. "Tudo começou no momento em que as mulheres receberam educação superior", diz o autor de Sexo e Poder (Editora Contexto, 2006) considerado pelo historiador Eric Hobsbawn um dos livros mais importantes publicados nos últimos 30 anos. E é nele que Therborn crava: o patriarcado não voltará jamais, o que certamente contraria apostas de ultraconservadores dos diferentes credos. Therborn admite que a crise familiar existe, mas não é só de valores. Prefere creditá-la a uma mistura complexa que envolve pobreza, carência educacional e o novo patamar das ambições. No meio urbano, pais com baixa escolaridade estão ausentes de casa - e sua ausência cria filhos mal integrados à sociedade. Na outra ponta, jovens adultos da classe média, no auge da vida reprodutiva, investem o que podem em educação e carreira para só então pensar em filhos - quando já é tarde demais para ter mais que um. A taxa de natalidade cai em muitas partes, também em conseqüência dos papéis ativos que as mulheres assumem na sociedade. Mas esse é um processo irreversível, alerta Therborn. "A emancipação feminina já está chegando ao mundo islâmico", declarou ao longo desta entrevista para o Aliás, em sua passagem por São Paulo. O que já ficou sedimentado da revolução sexual dos anos 60? Houve uma mudança no comportamento sexual, mas a revolução é muito mais ampla e abrangente. Sua principal causadora foi o aumento do número de mulheres recebendo educação superior, o que, por sua vez, resultou em mais mulheres trabalhando como professoras universitárias, mais pesquisadoras, mais estudos feministas. É um processo que tem início na "desindustrialização" de vários países. Desindustrialização? Coincidiu com a passagem de uma economia baseada na indústria para uma de serviços. O processo de consolidação da Revolução Industrial cimentou a família patriarcal clássica, de camponeses. A família patriarcal burguesa manteve o homem como ganhador do pão. Esse processo foi fragilizado pela onda de educação superior após a Segunda Guerra Mundial para jovens mulheres. É quando acontece a mudança crucial. A revolução sexual seguiu o mesmo padrão nos vários lugares em que aconteceu? Não. Em países como o Japão, ela se deu de forma mais controlada e discreta. O número de crianças nascidas fora do casamento civil e o índice de divórcios são baixos lá. A iniciação sexual também ocorre muito depois do que é padrão na América do Norte e Europa. Isso se repete em todas as grandes cidades asiáticas, como Taipé, Hong Kong ou Xangai. Em boa parte da Ásia e na África, a sociedade patriarcal se mantém e o motivo é que não houve ainda um número maciço de mulheres com educação superior cobrando igualdade de direitos. É uma combinação de história, instituições e educação. Precisamos pensar nesses três elementos. Na classe média urbana da Índia, hoje, a norma ainda é que os pais escolham os maridos das filhas. Lá existe um mercado de casamentos bastante sofisticado. O casamento é uma commodity, coisa que nos EUA ou na Europa seria considerada vulgar. É claro que existem casamentos envolvendo interesses financeiros nas Américas ou na Europa, mas de forma diferente. Como funciona o mercado matrimonial indiano? Assim como acontece na Europa e nos EUA, é comum na Índia a publicação, nos classificados de jornais, de anúncios buscando parceiros. A primeira diferença é que, lá, os textos não vêm em primeira pessoa. Não vêm na linha "sou desse jeito, meu cabelo é de tal cor, tenho interesses tais". Na Índia, os anúncios são do tipo "temos uma filha em idade para casar, sua pele é clara". Os anúncios, então, continuam: "Estamos procurando um rapaz educado preferencialmente no exterior". A questão fundamental é que, mesmo em comunidades urbanas de classe média, na Ásia, as relações familiares são bem diferentes. Tenho certeza de que os anúncios de busca de parceiros publicados pela imprensa brasileira não são assim. Devem ser mais parecidos com os europeus e americanos. A instabilidade no casamento, no Ocidente, é sinal de uma sociedade com problemas? Vamos por partes. Quando o índice de natalidade europeu começou a cair pela primeira vez, isso ocorreu porque os casais assumiram o planejamento das próprias vidas e passaram a determinar quantos filhos queriam ter. Isso começou já no fim do século 19. O que acontece agora é diferente. As pesquisas mostram que muitas mulheres têm menos filhos do que gostariam. Seu ideal em quase todo o continente seriam dois, mas acabam tendo apenas um. O que faz isso acontecer é um novo set de prioridades. Primeiro, você quer uma boa educação formal, e isso toma tempo. Depois, você quer estabelecer uma carreira. Em terceiro lugar, você quer comprar um apartamento. Só aí procura um parceiro. Quando tudo acontece, provavelmente já é tarde demais para ter dois filhos. O índice de fertilidade entre humanos cai drasticamente após os 30 anos. Isso inclui filhos fora do casamento civil? Sim, mas não são filhos acidentais. São filhos vindos também de relações informais. Quando abrimos mão de rituais, sejam civis ou religiosos, isso causa algum impacto? Certamente. Casamentos formais são mais estáveis que os arranjos de coabitação. É por isso que as pessoas escolhem coabitar, não é? Porque não têm certeza de que dará certo. De onde vem a instabilidade? O que acontece é que as pessoas estão exigentes, têm mais expectativas num casamento. Não toleram idiossincrasias do parceiro que a geração de meus pais, por exemplo, tolerava. Isso tem um impacto considerável nas crianças. Como resolver? Será preciso uma nova revolução sexual? Jamais retornaremos à estrutura patriarcal. O que acontecerá é que os índices de divórcios vão subir e descer. Nos EUA, eles estão caindo bastante, desde que atingiram um pico no início dos anos 1990. É importante nos lembrarmos que não é apenas a maneira como as pessoas encaram relações íntimas que aumenta o número de divórcios. Também há influências sociais e econômicas. O papa Bento XVI aponta uma crise familiar que, para ser solucionada, exige um retorno a certos valores. Ele tem razão? A Igreja católica deveria ser cautelosa antes de se manifestar a respeito de relações familiares porque seus representantes abrem mão de ter família. Não sabem como é. Agora, certamente há problemas. Existe o efeito de toda essa instabilidade sobre as crianças. Houve alguma negligência por parte dos movimentos feministas dos anos 1970 e 1980 nessa área, quando puseram toda a ênfase na liberação da mulher. Na Grã Bretanha, onde se verifica a menor presença dos pais no cotidiano das crianças em toda a Europa, sentem-se os efeitos mais sérios, personificados em jovens violentos, mal ajustados à sociedade. Novamente, eis a influência social e econômica, já que a ausência dos pais é mais evidente entre os mais pobres e menos educados. Esse é um padrão repetido em todo o mundo. Na comunidade negra, nos EUA, encontramos a mesma pobreza, a mesma ausência dos pais, assim como a violência entre jovens. É importante apontar que esse conjunto de fatores nem sempre gera violência, mas leva a um comportamento errático. Uma hora o jovem é afetuoso, no momento seguinte, agressivo. Essa é a verdadeira crise familiar: relações interpessoais inseguras, num clima de privação econômica. Radicais islâmicos denunciam a "decadência sexual" do Ocidente e a apontam como uma das causas de conflito entre as culturas. Diferença cultural gera conflito? Não creio. Existem sistemas familiares diferentes no mundo e esses contrastes sempre existiram. A emancipação feminina nos países muçulmanos se dará de forma diferente da que tomou na Europa ou nas Américas. Precisamos nos lembrar, sempre, que essas mudanças são recentes. Hoje, no sul da Alemanha, há uma lei estabelecendo que famílias de imigrantes devem reconhecer a igualdade entre os sexos sob ameaça de extradição. Não vejo nada de errado. Mas os democratas-cristãos alemães, que comandaram o país por muito tempo, só reconheceram tal igualdade na década de 70. Deveriam ser extraditados naquela época? O senhor acredita numa revolução sexual no mundo islâmico? Com certeza. No Egito, na Líbia e na Tunísia já há mais mulheres do que homens estudando nas universidades. Vemos os efeitos desse fenômeno no aumento da idade média de casamento. Na Líbia, hoje, é de 28 anos para as mulheres, repetindo o padrão europeu. Ainda há tradições patriarcais nesses países, mas é muito mais difícil dar ordens a uma jovem urbana de 28 anos, formada, esclarecida, do que a uma menina camponesa semi-analfabeta, de 17. No Irã, a idade média de casamento vem subindo desde a Revolução Islâmica. Haverá mudanças nos países muçulmanos. Educação é uma força maior que democracia como instrumento de mudança? Não em todos os casos. Quando se leva em consideração as relações entre homem e mulher, sim. Educação afeta oportunidades de trabalho, transferência de propriedade, secularização, instrumentos importantes de mudança social. Polêmicas como casamento gay, direitos reprodutivos, estudos com células-tronco embrionárias podem dominar a discussão política no século 21? Essas discussões estão dominando parte do discurso político atual. Ao menos, são preocupações evidentes da elite política, freqüentemente levantadas por políticos conservadores. Por quê? Porque eles sabem que essas polêmicas, no fundo, geram pouco conflito e pouca resistência organizada. Ao assumi-las, eles desviam de temas mais prementes e de difícil solução. O senhor acha que não há resistência quanto a esses temas? Não há. É mais fácil falar sobre a relação entre os sexos, sobre questões familiares, do que discutir por que o Brasil, no segundo governo Lula, ainda é um dos países com maior desigualdade social no planeta. Para enfrentar esse tipo de problema, aí sim, você encontra resistência organizada. Desigualdade econômica é uma questão muito mais complexa e problemática. Mas questões sobre família não são discutidas apenas no Brasil. Elas são discutidas em países nos quais muitas das batalhas cruciais a respeito das relações familiares já foram vencidas. Em países onde ainda existe um patriarcado institucionalizado, nos quais a supremacia masculina não é discutida, não há espaço para outras discussões. Ainda há um patriarcado dominante no Brasil? Não. O País mudou e continua mudando rapidamente. Anda num passo parecido com o do restante da Europa latina. Ainda há muita desigualdade entre os sexos, tanto social quanto econômica e política. Pode haver regiões rurais bem mais conservadoras, mas mesmo essas não podem ser chamadas de sociedades patriarcais. TERÇA, 1º DE JANEIRO A família é "a principal agência de paz no mundo", afirmou o papa Bento XVI ao rezar o Ângelus na Pça. São Pedro. Ele voltou a insistir em uma de suas principais cruzadas: a defesa da família nos moldes tradicionais - marido e mulher, casados pela Igreja Católica. Papa insiste na família à antiga ARRANJO INFORMAL "Muitos preferem coabitar a casar. Não toleram as idiossincrasias do parceiro" PROLE MENOR "No final, elas têm menos filhos do que gostariam. Seu ideal seriam dois, não um"

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