O pianista rodou

Em 1968, Romário apanhou na estréia de Roda Viva em Porto Alegre - o regime endurecia de vez

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Por Ivan Marsiglia
Atualização:

Tem dias que a gente se sente / Como quem partiu ou morreu / A gente estancou de repente / Ou foi o mundo então que cresceu* "É o pianista! Quebra a mão dele!", foi o que Romário José Borelli ouviu há 40 anos, no borrão da memória que lhe ficou daquele 4 de outubro em que o sonho de 1968 acabava no Brasil. A companhia viajara temerosa depois do ataque, em julho do mesmo ano, ao Teatro Ruth Escobar por integrantes do Comando de Caça aos Comunistas (CCC). Na ocasião, ao final do espetáculo Roda Viva, dirigido por José Celso Martinez Corrêa com texto e música de Chico Buarque de Hollanda, um grupo armado destruiu o teatro e agrediu os atores. Marília Pêra sofreu hematomas e teve a roupa rasgada. Uma única apresentação ocorreria no Teatro Leopoldina, em Porto Alegre, antes que a censura proibisse definitivamente a peça no País, por "subversiva, pornográfica e conter cenas críticas e ofensivas ao governo e às Forças Armadas". Sem saber o que fazer, o elenco se dividira e parte foi a uma festa. Romário, o ator Amilton Monteiro e o iluminador Marcelo Bueno decidiram voltar mais cedo ao Hotel Rishon, onde os agressores - cerca de 40, armados de cassetetes de madeira - os aguardavam. Marcelo, que teve o nariz quebrado, e Amilton, que também apanhou, conseguiram correr para o lobby, mas o pianista de 20 anos ficou para trás. Foi cercado, espancado e chegou a cair duas vezes, quando tomou chutes no rosto e no estômago. No caminho do hall até o elevador, protegeu-se como podia dos golpes. Um dos porretes espatifou-se contra seu antebraço, para a surpresa do agressor atônito. Foi quando ouviu a frase. Não bastava proibir a peça, era preciso impedi-lo, para sempre, de tocar. A gente quer ter voz ativa / No nosso destino mandar / Mas eis que chega a roda viva / E carrega o destino prá lá "A direção-geral do Departamento de Polícia Federal, com o intuito de esclarecer a opinião pública sobre os verdadeiros motivos da suspensão da encenação pública da peça teatral Roda Viva (...), informa o seguinte: a liberação do referido espetáculo ocorreu sem qualquer anormalidade, pois que o script e o ensaio geral apresentados ao Serviço de Censura de Diversões Públicas (SCDP) para exame prévio não continham qualquer atentado contra os dispositivos do decreto nº 20.493, de 24 de janeiro de 1946 (...). "Os artistas não respeitaram as marcações iniciais, aprovadas pelo SCDP, promovendo improvisações - cujas sandices estiveram fora de qualquer limitação etária. (...) Em cada espetáculo levado ao público, o script era modificado escandalosamente. A peça Roda Viva transformou-se, assim, em autêntico show depravado, numa constante sucessão de cenas atentatórias à moral e aos bons costumes. Toda a gama de atos libidinosos e de mímica pornográfica era apresentada no palco, culminando com um indiscutível ato sexual." (Brasília, 04/10/1968) Roda mundo, roda gigante / Roda moinho, roda pião / O tempo rodou num instante / Nas voltas do meu coração Romário sofreu hemorragia interna e teve que ser transportado de avião para São Paulo. As mãos, por milagre, escaparam ilesas. No aeroporto, o músico pôs a boca no trombone: "Eram militares". Por conta disso, foi procurado pela polícia no Arena e aconselhado pelos amigos a se recuperar escondido em uma fazenda no interior de São Paulo. Até hoje tem dificuldade de falar no assunto e não consegue ver cenas de violência na TV. "Só quem foi vítima da selvageria que se instala durante uma ditadura sabe o que é carregar esse peso para o resto da vida", desabafa. "Além daqueles dias amargurados, estende-se um calvário de noites e noites de pesadelo, que tenho na mesma intensidade 40 anos depois. Ninguém imagina a recorrência aos remédios para dores no corpo e a dependência de anos de psicoterapia." A gente vai contra a corrente / Até não poder resistir / Na volta do barco é que sente / O quanto deixou de cumprir Por vezes, o passado se faz literalmente presente. Há poucas semanas, procurado por um jornal catarinense, Romário contou sua história. A reportagem foi reproduzida em um site denominado Clube dos Militares. Logo abaixo, alguém postou um comentário que levou o músico a uma crise de hipertensão: "É pena que eu não estivesse lá para bater também". Apesar de tudo, ele diz não cultivar ressentimento e, por isso, nunca pediu indenização. "Fui vítima de um grupo de militares que não representa o Exército brasileiro, que é de grande dignidade", justifica. Para Romário, o Brasil anda em círculos quando o assunto é esse. Faz tempo que a gente cultiva / A mais linda roseira que há / Mas eis que chega a roda viva / E carrega a roseira prá lá Catarinense de Porto União, Romário é filho único de pais separados e foi criado pelos avós paternos. O avô, Augusto Borelli, nasceu na mitológica colônia Cecília, fundada no Paraná em 1890 pelo anarquista italiano Giovanni Rossi. No entanto, o neto não credita ao avô nenhum pendor político que viesse a ter nos anos 60. "Ele era um homem sem cultura formal, embora pleno de liberdade e com um sentido humano profundo", lembra-se. Era a música, e não a política, que interessava de fato ao menino com vocação de multiinstrumentista. Aos 6 anos já tocava acordeão. Logo passaria ao piano, ao violão e à flauta transversa. Seu Augusto insistiu que Romário fosse estudar em São Paulo e matriculou-o no colégio marista Arquidiocesano. De volta, terminou o secundário em um internato no Paraná. Aos 17, voltou à capital paulista para prestar vestibular. Alugou apartamento no número 26 da Rua Francisco Leitão, na zona oeste da cidade, onde travou conhecimento com vizinhos engajados como o diretor teatral Silnei Siqueira, o músico bossa-novista Roberto Ribeiro e a atriz Cândida Barros. Foi ela que primeiro o convidou a participar do Teatro de Arena, tocando violão em uma peça infantil de nome profético: O Carrossel Zangado. No elenco, Antônio Fagundes e Carlos Augusto Strazzer, teenagers como o garoto de Porto União. A roda da saia mulata / Não quer mais rodar não senhor / Não posso fazer serenata / A roda de samba acabou Nos saraus do predinho na Francisco Leitão e nas noitadas do Arena, Romário abandonou a ingenuidade do samba tradicional e das "sanfonas cafonas" desdenhadas por Rui Castro. A bossa nova que acontecia subverteu os acordes de seu violão. "Nunca esqueço o dia que ouvi Desafinado pela primeira vez: era uma descoberta, uma abertura de horizontes, um feeling que nunca se apaga." A essa altura, largou também o curso de Filosofia em que acabara de entrar na USP. E ouvia com admiração, sem abrir a boca, os intermináveis debates dos amigos artistas e intelectuais. "Às vezes, após os espetáculos, ficávamos no Arena ouvindo o (diretor Augusto) Boal falar do (filósofo alemão) Hegel até as 2 da manhã", lembra-se. "Aquilo era a melhor faculdade que eu podia ter na vida." A gente toma a iniciativa / Viola na rua a cantar / Mas eis que chega a roda viva /E carrega a viola prá lá A grande chance de pular para o elenco principal veio em 1967, quando seu mestre Carlos Castilho deixou a direção musical do Arena para trabalhar na TV Excelsior. Aconvite de Gianfrancesco Guarnieri, coube ao pupilo encarregar-se da trilha de Arena Conta Zumbi, em elenco com Lima Duarte e Dina Sfat. Vieram então Arena Conta Tiradentes e 1ª Feira Paulista de Opinião, já em 1968. A peça ocupava a parte de baixo do Teatro Ruth Escobar e Romário estava lá quando ocorreu o primeiro ataque ao elenco de Roda Viva. A apresentação em Porto Alegre seria a primeira e última da qual ele participaria do espetáculo concebido por Chico Buarque e Zé Celso. Em seguida viria o AI-5 e as luzes se apagariam no País. No peito a saudade cativa / Faz força pro tempo parar / Mas eis que chega a roda viva / E carrega a saudade prá lá No início de 1969, Paulo Autran tirou Romário de seu refúgio no interior. Levou-o para fazer a direção musical de sua remontagem de Morte e Vida Severina, do poeta e diplomata João Cabral de Mello Neto. O ator foi hábil na escolha do texto - tido como subversivo, mas da lavra, afinal, de um funcionário do Itamaraty - e ao solicitar autorização prévia ao comando do Exército, que consentiu, contanto que não houvesse palestras ou reuniões com os estudantes. O salvo-conduto permitiu que o elenco viajasse por todo o País em relativa tranqüilidade. A exceção foi a temporada em Porto Alegre, quando o diretor Silnei Siqueira julgou prudente que Romário tocasse escondido na coxia. Ficou gravado em sua memória o espetáculo de 20 de julho de 1969, no Teatro Ginástico Português, no Rio de Janeiro, data em que Neil Armstrong pisou na Lua. "Tinha menos de 50 pessoas na platéia e estávamos loucos para voltar ao hotel e ligar a TV. Vieram os primeiros acordes, aquela coisa do sertanejo com os pés no chão, enquanto o mundo desenvolvido chegava na Lua... Todo o mundo começou a chorar", conta. Em 1971, foi a vez de Augusto Boal remontar Arena Conta Zumbi. O sucesso foi tamanho que uma temporada de cinco dias em Buenos Aires virou três meses de casa lotada. Na volta ao Brasil, o diretor foi preso e levado para o DOPS, onde seria torturado. Com os jornais sob censura, o fato foi ocultado da opinião pública. A peça, no entanto, prosseguiu e coube a Romário, a cada noite, iniciar a apresentação com um discurso: "Queremos pedir desculpas por alguma falha, porque como todo o mundo sabe o nosso diretor Augusto Boal está preso e o Teatro de Arena, acéfalo". Era a forma de garantir que a vida de Boal fosse poupada nos porões. Arena Conta Zumbi foi à França e, durante a temporada, que se estendeu por Montpellier, Toulouse, Marselha e Nancy, a imagem da companhia de teatro em busca de um diretor sensibilizou a comunidade internacional - que pressionou pela libertação de Boal. Finalmente solto, foi encontrar o grupo em Paris - onde iniciaria um exílio que durou oito anos. Roda mundo, roda gigante / Roda moinho, roda pião / O tempo rodou num instante / Nas voltas do meu coração Com o fechamento do Arena, Romário decidiu cursar História na USP. Durante o período, escreveu a peça O Contestado, seu maior sucesso como dramaturgo. O texto de Borelli, escrito em dialeto regional e inspirado no conflito ocorrido entre 1912 e 1916 no interior de Santa Catarina e do Paraná, ficou em cartaz durante um ano, exibido seis dias por semana, no auditório da História. "Às vezes, a repressão apagava a luz do câmpus e fazíamos a peça iluminada pelos faróis do meu Fusca. No final, tínhamos que empurrar o carro, sem bateria. E caminhávamos juntos até a saída da Cidade Universitária para garantir que todos fossem em segurança." Irriquieto, Romário vive hoje em Curitiba, sempre entre a universidade, o teatro e a música. Trabalha em um romance histórico sobre seu Estado, escreve uma peça e dedica-se a sua nova paixão, o bandoneón argentino. Com as mãos sãs e salvas, peleja para dominar a complexa digitação do instrumento de Astor Piazzolla. "Tem 152 vozes", entusiasma-se. "E cai como uma luva para tocar Tom Jobim". *Trechos da canção-título, de Chico Buarque de Hollanda.

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