O poder do espanto

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Por Paula Sacchetta
Atualização:

“O tempo é precioso, minha filha”, disse Cristiano Mascaro ao reparar em meu interesse nas suas belíssimas fotos de família expostas na parede da sala. “Isso aí dá uma nostalgia...” Na casa afastada do centro de São Paulo, cheia de luz e linhas harmoniosas como cabe a um fotógrafo-arquiteto formado pela FAU-USP, Mascaro recebeu o Aliás para conversar sobre seu novo livro: Cristiano Mascaro, da Coleção Ipsis de Fotografia. 

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Aos 70 anos, um dos maiores nomes da fotografia brasileira, esteta paciente e rigoroso que fotografou os prédios e as ruas de São Paulo como poucos, fala de uma parte de sua obra nunca antes publicada: retratos, talvez a modalidade mais essencial, mais básica da fotografia. 

Nas mãos de Mascaro, um retrato parece fácil. Só parece. Porque, como define no livro o curador Eder Chiodetto, “alcançar a sofisticação por meio da simplicidade e economia de meios é o resultado da depuração da linguagem que um artista obtém em determinada etapa de sua carreira, após longo tempo de embate consigo, com suas ferramentas e referências”. 

Você se considera fotógrafo de arquitetura?

Não podemos afirmar isso. Eu fotografo a cidade. Arquitetura eu fotografava para amigos arquitetos e trocava por “DPV”, Dias na Praia Vermelha, nas casas deles. Gosto de arquitetura e faço isso também, mas a cidade é o cenário todo que a contém, e não um edifício isolado. 

Como os personagens da cidade entram aí?

Quando me mandam para algum lugar a trabalho eu cumpro todo o meu dever, mas também faço coisas para mim. Nas viagens que fiz pelo Brasil e mesmo nos trabalhos por São Paulo entrava nos lugares e acabava me deparando com cenas incríveis, de pessoas. E então as fotografava. O cotidiano me atrai. Uma pessoa num momento, num cenário. A empatia entre fotógrafo e fotografado, o fato de o retrato sempre carregar certa elegância, tudo isso.

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Qual foi o primeiro retrato que você fez?

O primeiro que me entusiasmou foi o dos carregadores de sacos de farinha. Eles estavam cobertos de branco, sujos pela farinha, com um short pequeno que parecia feito do material dos sacos de farinha e, naquela luz, quase não eram homens, eram esculturas. Eu disse “vocês são maravilhosos, posso fotografá-los?”. Companheiros de trabalho deles ficaram fazendo brincadeiras do tipo “essa é pra sair na Playboy”, mas eles nem ligavam. Um apoiou o cotovelo no outro e nos fechamos numa bolha de concentração, entregues àquilo. Foi a primeira vez que eu pensei “puxa, como é bom fazer retratos”, e me senti perto da alma daquelas pessoas. 

É difícil fotografar pessoas, não?

Esses retratos tinham uma aura de solenidade. Fiz todos com uma Hasselblad num tripé. Então as pessoas ficavam envaidecidas e acontecia uma troca muito intensa. Fotografei até uma prostituta sentada na beira de uma cama de hotel, ela ali posando e contente por estar sendo fotografada. Hoje é impensável.

Por quê?

Se você entra hoje num lugar para fotografar prostitutas à espera de trabalho, leva um tiro. Hoje todo mundo tem medo de todo mundo. E também fui atropelado pelo tal direito de uso da imagem. Se eu peço a foto antes, quebra a espontaneidade. Se peço para assinar uma autorização depois, o sujeito fica desconfiado. Mas a imagem é minha, o direito da imagem é meu. Porque a pessoa é a pessoa de carne e osso, minha foto é uma interpretação daquela realidade, não é a pessoa. Já conversei com um advogado sobre isso e sei das restrições. Fiquei inibido.

Que tal chegar aos 70 anos?

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Tenho muito ânimo ainda. Vivo do espanto. De olhar para uma coisa banal, começar a fotografar, aquilo vai crescendo e de repente se transforma em algo poderoso. Não me interessam o espetáculo pronto, a tragédia ou a beleza por si sós. Quero transformar o opaco em luminoso. Antonio Cândido tem um ensaio chamado O Mundo Desfeito e Refeito e acho que procuro ir por aí. Se tem um espelho refletindo o real, eu quebro esse espelho e remonto os pedacinhos, tento destruir a banalidade do real e colocar uma lupa sobre o transcorrer do tempo. 

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