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O poder em tempos de cólera

Para pensadora argentina, política encarna ódio, carisma, paixão. Falta aos governantes saber traduzir

Por Monica Manir e de O Estado de S.Paulo
Atualização:

 

SÃO PAULO - Depois de acertar um Duomo de alabastro nas ventas de Berlusconi, Massimo Tartaglia respondeu assim a quem lhe cobrou identidade: "Eu não sou ninguém". Mas Tartaglia é. Ele tem 42 anos, há dez faz tratamento por "problemas mentais" e, antes de ser preso, residia livremente em Milão, cidade onde o primeiro-ministro italiano era vaiado e chamado de palhaço após discursar em um comício. Tartaglia também tem pai e mãe. E foi Alessandro, o pai, quem pediu desculpas pela violência do filho: "Espero que Berlusconi o perdoe, mas temo que não o faça, porque é a segunda vez que o atacam".

 

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Em 2004, Berlusconi de fato levou um tripé de máquina fotográfica na cabeça. O agressor da ocasião, Roberto Dal Bosco, declarou ter cometido o ataque movido pela ira. Tartaglia afirmou possuir forte aversão ao partido de Berlusconi, o Povo da Liberdade. Quatro dias depois, o premiê capitalizou em cima da napa quebrada e da dupla de dentes perdidos: "O período em que estive internado demonstra o ódio de poucos e o amor de muitos italianos".

 

A argentina Beatriz Sarlo, aclamada como principal crítica cultural latino-americana e colaboradora do jornal La Nación, não se surpreende com atos tresloucados do gênero nem com os dividendos tirados pelos governantes de situações assim. Antes lembra que a democracia moderna já não se agarra nem ao rei, nem a Deus, nem ao proprietário da terra. "Agarra-se aos corpos, morada clássica das paixões." Também diz que vivemos uma crise das hierarquias, na qual o respeito aos políticos descamba morro abaixo. Junte-se a vulgaridade e a leviandade de alguns governantes para que eles sejam visto como um qualquer, vítima inclusive do ódio desmedido.

 

Quanto às ameaças recebidas por Cristina Kirchner também nesta semana, Beatriz Sarlo concorda que os principais suspeitos da frase "Matem a égua" são os que discordam do julgamento de repressores da ditadura militar. Nem por isso tira os Kirchners da reta: "O discurso deles tem ecos populistas, mas suas políticas não são redistributivas". Lula também incorporaria a seu estilo rasgos do populismo, "porém atento ao horizonte das possibilidades". Se a afetividade é tão indispensável quanto a razão, ela expõe a sua nesta entrevista. Pede que destaque a Ordem do Mérito Cultural, recebida das mãos do ministro da Cultura, Juca Ferreira, em novembro . "É o melhor prêmio que já ganhei."

 

Episódios como o ataque a Silvio Berlusconi e mesmo as sapatadas na direção de Bush mostram que aumentou a intolerância do povo com os políticos?

 

Esses episódios mostram não apenas uma escalada de violência como outros traços contemporâneos. Os políticos, por exemplo, já não têm garantido um respeito que os diferencie do resto da sociedade. Na realidade, vivemos uma época de crise das hierarquias tradicionais e também das hierarquias modernas. Ao se tornarem democráticas, as sociedades tendem também a desconfiar e zombar das elites. De outra parte, Berlusconi, com sua vulgaridade desafiante e impudica, faz todo o possível para se passar por esse "qualquer". No episódio das fotos com as mulheres, em que aparece nu ao lado delas, ele se defendeu afirmando que fez o que qualquer italiano gostaria de fazer. Se Berlusconi não se considera comprometido com responsabilidades maiores, tampouco um agressor deveria considerá-lo digno de cortesia.

 

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Alguns defensores do primeiro-ministro enfatizam que o ataque foi provocado por uma pessoa com distúrbios mentais e, portanto, não merece reflexão além da necessidade de tratamento de Tartaglia. A condição psicológica do agressor faz a diferença nessa avaliação?

 

A loucura, além de suas origens subjetivas, tem contornos culturais. Desde o atentado contra João Paulo II, em 1981, por um terrorista turco que se arrependeu e foi perdoado no cárcere, o magnicídio é uma forma de violência cujas razões devemos buscar. Além disso, os veículos de massa inauguraram um cenário espetacular, onde os crimes adquiriram dimensões de narrativa ininterrupta e de alcance planetário. Isso começou em 1963, com o assassinato de John Kennedy. Temos alguns segundos de filmagem do atentado, mas que nos impactam justamente porque são escassos: nós os conhecemos de memória, como o logotipo do magnicídio. Hoje, devido à presença ininterrupta de câmeras e equipes, um assassinato em público tem sua reprodução assegurada em nível hollywoodiano.

 

Falando em mídia, jornais do grupo editorial do primeiro-ministro atribuíram o ataque que ele sofreu no domingo a uma "campanha de ódio" supostamente empreendida pela oposição. Setores do governo examinam inclusive a possibilidade de fechar páginas da internet que "incitem à violência". Os meios de comunicação estariam fomentando intolerâncias?

 

Creio que são duas questões diferentes. Berlusconi é dono de um monopólio de meios de comunicação que não se distinguem por promover virtudes cívicas, mas por propiciar uma grosseria desafiante que compete com a de seu proprietário. A oposição se expressa basicamente pela imprensa escrita que, como se sabe, não tem maior influência na esfera pública. Não me parece verossímil que o agressor de Berlusconi seja um leitor fanático do La Repubblica. De outro lado está a internet, onde é possível encontrar todas as boas causas, mas também todos os delírios: páginas que incitam à violência, à anorexia, à homofobia, ao suicídio assistido seguido de canibalismo do cadáver, páginas que falam de política como se a política não exigisse, para ser realmente entendida, o mesmo saber que uma boa partida de futebol. A internet é um universo gigantesco de textos cuja circulação plural é inegável. Mas, como sucede com a democracia, as ideias difundidas nem sempre são corretas e inteligentes. Aceitar isso é o perigo e a essência da democracia.

 

Quando a intolerância pode ser chamada de ódio?

 

A passagem da intolerância ao ódio se dá nas ações. E, sobretudo, a partir da decisão de um indivíduo ou de um grupo de indivíduos de converter um sentimento hostil em um discurso articulado para promover intervenções materiais e condutas sistemáticas. Os judeus europeus foram vítimas da intolerância quase de maneira ininterrupta, mas somente em algumas circunstâncias esse sentimento de hostilidade, causado pela diferença que eles representavam em relação à homogeneidade comunitária, forneceu os argumentos que levaram a práticas agressivas.

 

Tartaglia agrediu o premiê com a réplica do Duomo de Milão, uma jóia arquitetônica da Baixa Idade Média. É como se o suposto maluco atirasse na face do político o melhor da Itália, inclusive em termos civilizatórios. Como este episódio vai se alojar no imaginário social?

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Não podemos sabê-lo ao certo porque, para se unir a uma espécie de alegoria contraditória, como você sugere, é necessário analisar em detalhe como a mídia apresentou essa simbiose entre o Duomo e uma arma. E, portanto, ver como operam outros discursos que encantem ou rechacem o sentido alegórico dessa fusão. No caso das Torres Gêmeas, a imagem sintética de um avião convertido em bomba vinha avalizada por milhões de imagens anteriores, entre elas as de mísseis parecidos com aviões de combate.

 

Que intenção tem Ahmadinejad ao afirmar que o Holocausto não existiu? Alimentar ainda mais a cizânia entre árabes e judeus? Chávez andou falando o mesmo. A negação de extermínios e genocídios, por si mesmos odiosos, não aprofunda essa raiva em relação ao outro?

 

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Não sou, nem remotamente, uma especialista em política do Oriente Médio. Mas é óbvio que os negativistas do Holocausto se colocam numa perspectiva facilmente desmentida pela história. O Holocausto ocupa um lugar não só central, mas único, na cultura política ocidental porque foi na Alemanha nazista que se montou essa gigantesca máquina de matar. Contudo, parece culturalmente improvável que ocupe esse mesmo espaço no Irã, onde não existiu um desejo público de reconhecimento do crime cometido contra os judeus. E parece mais improvável ainda que essa vontade pública possa emergir nas condições atuais de conflito no Oriente Médio. A pergunta sobre a negação do Holocausto é completamente pertinente, mas eu a faria aos intelectuais e artistas iranianos, embora, se vivem no Irã, é pouco provável que estejam em condições políticas para contestá-la. Caso diferente é o de Chávez, que, sem nenhum princípio, não está disposto a polemizar com quem pode ser um aliado valioso. Mas, como de costume, exagera: não é necessário seguir o Irã de ponta a ponta, pois é provável que a aliança com a América Latina também convenha a Ahmadinejad.

 

Diante desse comportamento de Ahmadinejad, alguns teóricos, como Gianni Vatimo (que também é político), propõem que não se deve demonizar o presidente iraniano, e sim tentar o diálogo. A senhora concorda com essa proposta?

 

Os países dialogam sem levar em conta as ideologias, salvo quando estas impulsionam práticas completamente opostas a um conjunto muito restrito de princípios. É o que permite a existência de uma política internacional.

 

Voltando às sapatadas em George W. Bush, promovidas pelo jornalista iraquiano Al-Zaide em dezembro de 2008, o presidente terminou seu mandato como um dos mais odiados da história americana, igualando-se a Richard Nixon. Barack Obama, por sua vez, começou com enorme carisma, mas, após um ano de mandato, viu seus índices de popularidade caírem sensivelmente. Há no Facebook, por exemplo, grupos com o lema: "Se você odeia Obama e quer vê-lo morto, junte-se a nós". A senhora acha que o desgaste de Obama poderia colocá-lo num patamar de impopularidade semelhante ao de Bush?

 

O mais inoportuno que podia suceder a Obama foi receber um Prêmio Nobel que funciona como um cheque com data de validade para dez anos e ninguém sabe se terá fundos ou não. A academia se comportou como um clube de aficionados por celebridades. Tão inconsistente como o prêmio são as páginas de "ódio a Obama". Acredito que o público esteja recentemente se dando conta de que Obama é, em primeiro lugar, um presidente americano que não chegaria à Casa Branca se não tivesse oferecido a segurança de sê-lo. O que não quer dizer levar adiante a mesma política de George W. Bush, mas colocar, em primeiro lugar, os interesses de seu país.

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Obama também pode ser alvo do recrudescimento do ódio racial?

 

Acho que não. Ele tem a habilidade suprema de não tratar a questão racial como um problema, muito menos como um conflito. Essa também foi a razão pela qual conseguiu a maioria entre os eleitores.

 

O ódio na política é tão mais intenso quanto maior a frustração?

 

Muitas pesquisas mostram que o ódio aumenta à medida que se percebem as desigualdades. Não é fruto simplesmente da pobreza, mas das diferenças insultantes entre os muito pobres e os muito ricos, os muito miseráveis e os muito poderosos. Alguns políticos trabalham com essa paixão, convertendo o ódio em impulso de intervenção pública. De todo modo, há que se reconhecer que a política não é simplesmente uma prática de ideias e programas. A política democrática encarna carisma e sentimentos. Se quisermos uma política que interesse à grande maioria, é impossível pensá-la sem que haja fortes afetividades envolvidas. A responsabilidade dos políticos é fazer uma permanente tradução institucional dessas paixões, em vez de (como costuma acontecer) entregar-se a elas.

 

Na Argentina e no Chile estão sendo julgados crimes de tortura dos tempos ditatoriais. Há quem diga que isso estimulará o revanchismo. O que a senhora acha?

 

O Chile mal começou a julgar os responsáveis pelos crimes da ditadura. É difícil saber quais serão os cenários futuros, ainda que se possa, por hipótese, presumir que os políticos chilenos têm duas características: ater-se fortemente aos limites jurídicos e não provocar alarde com as medidas que acreditam ser indispensáveis, porém divisivas. Na Argentina, desde o primeiro julgamento das juntas militares sob o governo de Raúl Alfonsin, sucederam-se fatos distintos: primeiro, revoltas militares que lograram o indulto dos condenados, mas também reclamações pertinentes das organizações de direitos humanos, que impediram que a questão se encerrasse com esse indulto. De fato, continuaram os julgamentos no caso do sequestro das crianças até que, em 2003, já na presidência de Néstor Kirchner, o Congresso anulou a anistia e todas as leis que impediam que se continuasse com outros julgamentos. Hoje, quase semanalmente se produzem condenações. A diferença em relação aos primeiros julgamentos da década de 80 é que hoje não há militares imputados dentro das Forças Armadas e, portanto, não há risco de golpe de Estado, como aconteceu na segunda metade dos anos 80. Creio que a Argentina foi o país que mais avançou no julgamento dos responsáveis pelo terrorismo do Estado, e o arcabouço público construído nos tribunais foi uma das bases para a transição democrática.

 

As ameaças de morte recebidas pela presidente argentina teriam, de fato, ligação com o julgamento de repressores da ditadura militar do país, entre eles Alfredo Astiz, acusado de cometer crimes de lesa-humanidade na Esma?

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Há quem acredite que são ameaças vindas de forças-tarefas ideologicamente identificadas com os repressores. Esses grupos existem. Grupos clandestinos com essa inclinação também atuaram como cúmplices nas explosões que destruíram o edifício da embaixada de Israel e da Associação Mutual Israelita-Argentina, em Buenos Aires. Eles se dedicam como free lance ao tráfico na tríplice fronteira, entram e saem de lugares pouco visados pelos aparatos policiais e pela inteligência.

 

O Brasil, neste quesito, pouco fez. E são muitas as resistências no País a que se reveja a Lei da Anistia. O que pode ser mais acirrador de ódios: fazer justiça em relação aos crimes de tortura do passado ou se fiar a uma 'paz arranjada', como a nossa?

 

A justiça é indispensável e não conheço outra forma de exercê-la senão pelos tribunais. O grande processo de julgamentos está ameaçado pelos riscos de se converter a condenação em revanche. Todavia, não conheço outro caminho e estou feliz que meu país o tenha conseguido (num país tão inconstante em todos os demais aspectos, tão incapaz de manter uma continuidade de políticas, os julgamentos foram contínuos desde 1984). Acho também que os parentes das vítimas deveriam receber um reconhecimento público: os mortos são mortos, e assim, em sua dignidade, devem ser reconhecidos. Não há mortos melhores nem mortos piores.

 

Governos ditos populistas tendem a tornar mais passional o exercício da política?

 

Os populistas conhecem perfeitamente as dimensões afetivas da política. Entendem que nem os programas, nem as ideias são suficientes para uma política de massas e, em geral, são bons líderes que sabem recorrer à distância entre o projeto e os sujeitos que devem sustentá-lo. A política democrática moderna tem que se enraizar em alguma coisa: não se agarra ao rei, nem a Deus, nem ao proprietário da terra. Agarra-se aos corpos, morada clássica das paixões. Isso não quer dizer que qualquer solução populista seja aceitável. Existem populismos messiânicos e autoritários, que governam em nome das massas com a segurança de seres superiores. Há populismos que não vacilam em violar princípios institucionais que devem estar na base de um governo democrático e passam por alto no fato de que a institucionalidade republicana é a única garantia para que o populismo não se converta em um regime autoritário. Também há populismos que conservam o estilo de discurso e de mobilização, mas a essência de suas medidas não responde aos interesses do povo que dizem representar. Há populismos conservadores ou corruptos, que mantêm as massas em uma rede onde não se constroem cidadãos, mas clientes. Em minha opinião, o fundamental hoje é a construção de culturas de cidadania. Provavelmente não resultarão em culturas republicanas "puras". Nessas culturas se respeitam os procedimentos institucionais, o que não exclui estilos culturais de matriz populista, plebiscitária ou de mobilização direta. Mas me diga: onde podemos encontrar uma cultura "pura"?

 

Colaborou: Carolina Toledo

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