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O que a superação do nazismo na Alemanha pode ensinar sobre o racismo nas Américas

Livros exploram as semelhanças e diferenças entre as tragédias coletivas do Velho e do Novo Mundo

Por André Caramuru Aubert
Atualização:

O que têm em comum o racismo nas Américas, o Holocausto nazista e o sistema de castas na Índia? Resposta rápida: muita coisa. Dois livros recentes fazem da análise comparativa entre essas diferentes tragédias o principal método para tentar entender o preconceito e apontar caminhos para superá-lo. O primeiro é Learning from the Germans – Race and the Memory of Evil (Aprendendo com os alemães – Raça e a memória do Mal, em tradução livre), de Susan Neiman, que saiu no segundo semestre do ano passado. O outro é Caste – The Origins of Our Discontents (Casta – As origens de nossos desgostos, em tradução livre), de Isabel Wilkerson, lançado no mês passado.

Campo de concentração de Auschwitz Foto: Kacper Pempel/Reuters

A filósofa Susan Neiman, nascida no sul dos Estados Unidos em 1955, teve uma infância marcada por dois preconceitos: branca, sentia na pele o racismo quando as famílias das amiguinhas da escola descobriam que era judia, além de perceber olhares enviesados dos vizinhos quando levava colegas negras para brincar em casa. Depois de se formar em Harvard, Neiman lecionou nos Estados Unidos, em Israel e, em dois períodos distintos, em Berlim (onde vive hoje). Essa trajetória foi decisiva para que ela pudesse desenvolver um olhar peculiar a respeito do preconceito. O título, à primeira vista, causa estranheza. Como aprender com o povo que criou o nazismo, a mãe de todas as tragédias racistas no século 20? De fato, no pós-guerra, ajudados pelas engrenagens da Guerra Fria, quando eram essenciais aos interesses de Washington, os alemães puderam se dar ao luxo de apenas fingir arrependimento. Exceto pelos principais líderes nazistas, foram julgados e condenados em Nuremberg, a grande massa de simpatizantes, mesmo os que cometeram crimes graves, acabaram se safando, inclusive conservando cargos públicos. Esta foi a Alemanha que Neiman conheceu quando viveu em Berlim nos anos 1980. Mas, quando retornou, em 2000, convidada para dirigir o Einstein Fórum, um prestigiado centro de estudos, ela sentiu uma grande mudança no país. As novas gerações pareciam decididas a encarar o passado, e haviam desenvolvido uma espécie de tolerância zero em relação ao nazismo. O Holocausto não era mais um tabu e os jovens estavam dispostos a refletir sobre os atos de seus pais e avós. Berlim, já sem o Muro, se tornara uma das cidades mais tolerantes do mundo. Essa transformação levou Neiman a pensar na região onde nasceu, e ela decidiu passar um período no sul dos Estados Unidos para investigar se algo havia mudado desde seus tempos de juventude. Ficou meses viajando, principalmente pelo Mississippi, conversou com brancos e negros, visitou universidades, museus e ONGs. Não foi difícil concluir que, se houve evolução, ela fora pífia; a Alemanha avançara muito mais. Para começar, Neiman se deu conta de que, entre a casa em Berlim e a escola na qual estudavam, suas filhas não passavam por bandeiras com suásticas, estátuas de Hitler ou de seus generais; ao passo que as crianças negras do Sul eram obrigadas a conviver, o tempo todo, com os símbolos da opressão a seus antepassados. Na Alemanha é proibida a exibição pública de símbolos nazistas. A liberdade de expressão tem limites. Nos Estados Unidos, pelo contrário, a defesa em público do racismo é permitida e, pior, até mesmo instituições oficiais faziam isso. Muitas bandeiras estaduais reproduziam, há até pouco tempo, a confederada (isso terminou no começo de setembro, quando o Mississipi se tornou o derradeiro estado sulista a trocar a bandeira). Estima-se que existam mais de 1.500 estátuas em homenagem a generais e soldados confederados espalhados pelos estados do sul. Mesmo com todos os protestos após o assassinato de George Floyd, em maio, apenas cerca de 30 delas foram removidas. E, se é verdade que tanto nazistas quanto escravistas do Sul foram derrotados nos campos de batalha, os racistas estadunidenses se reorganizaram em poucos anos. Assim que os soldados do Norte saíram, foram criadas inúmeras leis estaduais para assegurar que, ainda que não houvesse escravidão, haveria exploração e segregação. Quando as leis não resolviam, partia-se para a intimidação e a violência, incluindo os infames linchamentos. As últimas leis segregacionistas só seriam derrubadas em meados da década de 1960, depois da explosão dos movimentos por direitos civis, ou seja, cerca de cem anos após o fim da Guerra Civil. Assim, a legislação racial americana só começou a ser de fato desmontada vinte anos depois da antissemita alemã em 1945. Uma outra distinção está na questão das reparações. Enquanto a Alemanha pediu perdão ao povo judeu, erigiu monumentos em honra das vítimas e pagou indenizações aos sobreviventes, os Estados Unidos não fizeram nada disso com seus antigos escravos e seus descendentes (igualzinho ao Brasil). Nem desculpas, nem dinheiro, nem programas de integração social. Muito pelo contrário, as ações sempre foram no sentido de homenagear os líderes racistas e perpetuar as desigualdades. Ainda assim, Neiman, sustenta, as pessoas vinham conversando e, as coisas, melhorando. E então Trump foi eleito, e uma série de retrocessos teve início. Na Alemanha, por sua vez, um partido de extrema-direita, o AfD, fundado em 2013, vem ganhando força. Evoluir nunca é uma linha reta. O mesmo problema, um outro recorte, é o que nos traz Isabel Wilkerson. Jornalista veterana (tem um Pulitzer), seu livro, recomendado pelo Oprah’s Book Club, já nasceu best-seller. A tese central é que o racismo nos Estados Unidos (assim como o antissemitismo nazista) equivale ao sistema de castas da Índia, na qual os dalits, ou “intocáveis” são a mais baixa. A ideia não é nova, mas a releitura é convincente. Em termos simples, define-se casta como uma separação social hierárquica baseada em nascimento, na qual aos membros de cada camada é vedada a mudança de nível. O indivíduo pode estudar, pode até aumentar sua renda. Mas a casta à qual pertence estará eternamente carimbada em sua pele. O livro é recheado de histórias, com personagens como Einstein, Gandhi, o general Robert Lee e, inclusive, a própria autora. Wilkerson, que é afrodescendente, lembra um episódio de quando era repórter do New York Times e foi entrevistar um alto executivo em Chicago. Quando ele chegou, atrasado, ela se apresentou. O executivo a ignorou, dizendo, “desculpe, estou atrasado para um compromisso”. Ela: “Acho que eu sou o seu compromisso.” Ele: “Não, o que tenho é um encontro importante com o NYT.” Ela: “Mas eu sou o NYT.” A conversa prosseguiu, Wilkerson chegando a mostrar a identidade, e ainda assim ele se recusou a acreditar, até o ponto em que ela foi obrigada a desistir. “Aquela foi a primeira vez em que fui acusada de tentar me fazer passar por mim mesma.” Wilkerson era qualificada, estava bem vestida, tinha identificação. Mas, aos olhos do outro, ela, de uma casta inferior, não poderia ser a jornalista importante que ele aguardava. Uma outra história conta o susto que Marin Luther King tomou, em uma visita a uma escola durante viagem à Índia, ao ser apresentado aos alunos como “o líder dos intocáveis americanos.” O dr. King, aliás, acabaria ficando muito próximo de B. R. Ambedkar, o primeiro grande líder intocável na Índia a lutar por reformas (a Índia, cujo sistema de castas é incrivelmente complexo, é mais um país que continua longe de superar a questão). São dois livros instigantes e moderadamente otimistas. Ambos defendem que mudanças não ocorrerão sem que haja ampla tomada de consciência dos problemas e de muito diálogo. Não será simples nem rápido, mas tampouco impossível. Afinal, alguém vai negar que a Alemanha de hoje, ainda que tenha problemas, seja um país infinitamente melhor do que era em 1940? *ANDRÉ CARAMURU AUBERT É HISTORIADOR E ESCRITOR

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