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O que o genial e misantropo pianista Glenn Gould nos ensina sobre isolamento social

Gênio do piano no século 20, Gould passou os últimos 18 anos de sua vida sem se apresentar em público por opção própria, mas se manteve como uma 'presença' de destaque na vida musical

Por João Marcos Coelho
Atualização:

O crítico musical norte-americano Mark Swed levantou a bola semanas atrás num artigo no jornal Los Angeles Times sobre um pianista que fez do isolamento – situação forçada a que estamos sujeitos neste momento de pandemia – um ideal, o norte de sua existência. E quanto mais ele mergulhava na solidão e na recusa ao contato direto com outros seres humanos, mais realizado se sentia. Estou falando, claro, do canadense Glenn Gould (1930-1982). Em 1964, anunciou logo após um recital em Los Angeles, no dia 10 de abril, que não voltaria mais a tocar em público. Ninguém acreditou. Mas foi o que aconteceu. Em seu estúdio, em casa, dedicou-se à gravação. E, numa inversão de expectativas, sua ausência transformou-se numa das mais destacadas “presenças” na vida musical do planeta. Escreveu muito, produziu programas e séries de rádio, documentários – e gravou muita música. Tudo de qualidade superior. 

O pianista Glenn Gould Foto: Fred Plaut/Sony Music

E agora, em plena pandemia, seu nome volta a circular porque ele foi um apóstolo do isolamento, como observava décadas atrás com precisão o fino intelectual militante em favor da causa palestina, crítico literário e musical Edward Said (1935-2003). Said fez da música sua maior paixão. Pianista e crítico musical, fundou em 1999, ao lado do maestro israelense Daniel Barenboim, a Orquestra West-Eastern Divan, reunindo músicos de todas as etnias do Oriente Médio. Entre os pianistas que mais apreciava, um foi seu predileto, Gould. Ele assinalou a incrível “presença cultural” do músico, suas “incansáveis incursões” pelo rádio, televisão, crítica e cinema, que “realçam, intensificam e iluminam seu próprio estilo de tocar, dando a seu estilo uma estética autoconsciente e uma presença cultural cujo objetivo, mesmo se nem sempre claro, era capacitar a performance a se engajar ou se filiar com o próprio mundo, sem comprometer a qualidade essencialmente reinterpretativa e reprodutiva do processo”.  Tem lavado obsessivamente as mãos? Claro, não podemos correr riscos. Em tempos ditos normais, Gould lavava obsessivamente as mãos, esterilizava tudo que pudesse eventualmente contaminá-lo. Os adjetivos que escolhia como representando os mais elevados elogios que pudesse fazer a outros ou receber eram “repouso”, “imparcialidade” e “isolamento”. A listinha é de Said, mas eu acrescentaria uma quarta, abstração. Tudo que fosse corpóreo o incomodava. Como, por exemplo, a música a partir do momento em que Mozart mudou-se para Viena, em 1781, incluindo Beethoven e os românticos de todo o século 19. Preferia a abstração do contraponto de Bach. Ou, dito de outro modo, a “democracia” da convivência entre melodia e harmonia: “A ideia de um atributo melódico distinto dos componentes harmônicos – isto é, separando-se melodia e harmonia em entidades individuais, o que é uma característica do predominantemente homofônico estilo clássico -- sempre me pareceu antiestrutural, ou melhor, antidemocrático”. Mas voltemos ao isolamento. Dentro de casa, ele fazia horários que nada tinham a ver com o mundo exterior. Said, aliás, acrescenta outra palavra para caracterizar a visão de mundo do pianista: controle, “a grande motivação de sua vida”. Na realidade, ele mal suportava o mundo exterior. E isso muito antes de renunciar aos recitais e concertos públicos. “Desde que me lembro como gente, sempre passei a maior parte do meu tempo sozinho. Não que eu seja antissocial, mas considero que se um artista quer utilizar seu cérebro num trabalho criador, o que se qualifica como autodisciplina, isolar-se da sociedade é absolutamente indispensável”. Mas, ao contrário do que pode parecer, Gould jamais calçou as sandálias da humildade. É claro que ele sinceramente viveu tentando descontruir a figura do artista romântico semideus: “formas napoleonísticas” induzem o intérprete a uma atitude de “demiurgo arrogante” (expressão de Michel Schneider no livro Glenn Gould Piano Solo, 1988). Sua megalomania transparece neste venenoso sonho que contou: “Sonho que estou num outro planeta, fora do sistema solar, e vejo que sou o único habitante. Tenho uma extraordinária sensação de alegria, pois tenho a possibilidade – e autoridade – de impor meu próprio sistema de valores a todas as formas de vida deste planeta; tenho a sensação de que posso criar um sistema de valores completo e planetário à minha própria imagem”.  Ele tinha mesmo muita dificuldade de se adaptar ao mundo exterior. Em janeiro de 1957 e já sucesso estrondoso por sua gravação ao piano moderno das Variações Goldberg de Bach, Glenn estreou em concerto com orquestra no Carnegie Hall, em Nova York. Tocou o Concerto nº 2 de Beethoven com a Filarmônica de Nova York e Leonard Bernstein. Ele tocaria na segunda parte. Mas não quis assistir à primeira parte. Dormiu a tarde inteira. Acordou às 19h30 e, em jejum, tocou duas vezes o concerto no quarto. Estranhamente, tirou os dois pares de luvas (fato raro, elas costumavam acompanhá-lo as 24 horas de cada dia). Detalhe; tocou no ar, no vazio, e não no piano que tinha à disposição no quarto. Às 20h30 começou o ritual de imersão de braços e mãos na água quente – o que durou quase uma hora. Suspense: Gould chegou ao Carnegie Hall 2 minutos antes de tocar, vestido como um urso polar. Stress total no teatro, entre os músicos, no público e Lenny Bernstein.  Tocar em público equivalia a uma sessão de tortura para alguém assim. Ele chamava as salas de concerto de arenas sangrentas. O público queria ver sangue, compartilhar o fracasso do artista, dizia.  Quando anunciou o abandono definitivo dos palcos, previu com ar sério que apresentações artísticas ao vivo, em concertos, shows, performances, etc. desapareceriam nos 25 anos seguintes. Erro de cálculo. As performances públicas estão cada vez mais no centro da vida musical do planeta. Mas neste exato – e sofrido – momento, convenhamos, ele acertou. Falta só combinar com as “lives” que estão explodindo pelo planeta digital. Como as redes sociais são “democráticas”, qualquer um faz uma “live” e já fica se achando. Isso é ruim, porque acaba atropelando iniciativas muito boas. A todos, por favor, vale uma dica gratuita: ouçam os programas radiofônicos e assistam sobretudo à trilogia Norte de documentários feitos para a TV canadense. Temos muito que aprender com mestre Gould, que, aliás, assimilou muito do que praticou em termos de comunicação com outro canadense ilustre, Marshall McLuhan, o guru da aldeia global. *JOÃO MARCOS COELHO É CRÍTICO MUSICAL E AUTOR DE ‘PENSANDO AS MÚSICAS NO SÉCULO XXI’ (PERSPECTIVA)

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