Em meio às crises geradas pela premiação de Roman Polanski com o César deste ano e pelo forte impacto da pandemia de coronavírus sobre a indústria de entretenimento, um pequeno abalo sísmico na cultura cinematográfica não passou despercebido pela mídia: a revista Cahiers du Cinéma, tal como a conhecemos, pode ter acabado.
Pode, mas ainda não acabou concretamente. A marca ainda existe, a redação continua no mesmo endereço em Paris (18-20, rue Claude Tillier), só que os 15 críticos que a editavam pediram demissão, na Quarta-feira de Cinzas.
Os novos donos da marca – um consórcio de investidores, que a comprou em 30 de janeiro e é liderado pelo banqueiro Gregoire Chertok e um bando de homens de negócios ligados, em sua maioria, à indústria de filmes – ainda estão atônitos. Com a diáspora e seu motivo. Haviam prometido liberdade total aos editores, mas estes duvidaram e se anteciparam ao primeiro conflito, que acreditavam inevitável.
Fosse outra revista, ninguém daria bola, mas a Cahiers du Cinéma nunca foi uma revista qualquer, e sim a mais importante e influente publicação do gênero de todos os tempos, a bíblia dos cinéfilos do mundo inteiro, a incubadeira dos cineastas da Nouvelle Vague – o que vale dizer, a principal fonte inspiradora dos jovens que entraram no metiê a partir dos anos 1960.
Não foi a primeira discórdia envolvendo a revista, que emburacou outras vezes por dissensões internas, perda de leitores e a falta do vil metal. Não subsidiada pelo Estado ou por uma instituição comparável ao British Film Institute, como é o caso da venerada Sight & Sound, a mais antiga concorrente em circulação, a Cahiers (ou o Cahiers, como minha geração se referia a ela) só deixou de ser empresarialmente modesta quando um endinheirado executivo da Hachette, Daniel Filippachi, cedendo a apelos de amigos, comprou a revista em 1964.
Divisões internas vez por outra fecharam o tempo na velha redação, no 146 da avenida Champs-Elysées. No cerne das discussões, a leniência ou o excesso de entusiasmo da revista pelo cinema americano.
Ao longo dos anos 50 (Cahiers foi lançado em 1951 pelo mestre da crítica André Bazin) e até o começo dos 60, Hitchcock, Howard Hawks, Nicholas Ray, Samuel Fuller e Douglas Sirk foram tratados a papinha pelos idiossincráticos “jovens turcos” que dominavam o expediente da revista, em detrimento de outras figuras mundialmente consagradas como John Huston, William Wyler e Billy Wilder. Foi no dorso dessas preferências que a revista quadruplicou seu universo de leitores. Sua tiragem de 3 mil exemplares mensais saltou para 12 mil.
Responsável pela parte editorial nesse período, o “estetizante” e apolítico Eric Rohmer, também o mais intelectualizado da turma, acabou confrontado por dois co-fundadores da revista, Jacques Doniol-Valcroze e Pierre Kast, politizados e de esquerda, que o substituíram por um comitê de redação, com Jacques Rivette alçado a redator-chefe.
Ainda com sua tradicional capa amarela, medindo 25cm x 17,5 cm, a Cahiers conheceu sua segunda fase de ouro, diversificou seus interesses, aproximou-se da estética de Brecht, deu atenção ao cinema direto e abriu-se a outras hermenêuticas. São dessa época as históricas entrevistas com o antropólogo Lévi-Strauss, o pensador Roland Barthes e o músico Pierre Boulez.
Ainda vivo aos 92 anos, Daniel Filippachi, ex-fotógrafo da Paris Match, colecionador de arte surrealista e então editor da sofisticada revista Jazz Magazine, foi o pivô da segunda crise da Cahiers.
Deu um “banho de loja” na revista, ampliou-lhe as dimensões, refinou-lhe a paginação e anexou a seu corpo editorial alguns colaboradores da Jazz Magazine, como os cinéfilos Jean-Louis Comolli e Jean Wagner, mas abusou da autoridade ao exigir que a primeira capa em cores da Cahiers estampasse uma cena do filme psicodélico Chappaqua – Almas Entorpecidas, de Conrad Rooks.
Contou-me a crítica e ex-secretária da Cahiers Sylvie Pierre que ela e seus colegas reservaram a primeira capa em cores da revista para um filme admirado por todos na redação. Chappaqua seria a última escolha que eles fariam. Mas havia motivos publicitários e pecuniários por trás da renitente escolha de Filippachi, e o dono da firma não se dobrou às ponderações de seus comandados.
Daquela vez, a redação não pediu o boné, como agora, mas cercou-se de algumas salvaguardas, e finalmente em julho de 1969 a Cahiers chegou às bancas com sua primeira capa em cores escolhida por consenso: O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro, de Glauber Rocha, exibido no Festival de Cannes daquele ano com o título de Antonio das Mortes.
Depois de Maio de 68, já sem o arrimo de Filippachi, a revista padeceu uma fase franciscana. Dominada por Godard e teóricos maoístas, virou um panfleto graficamente modesto e de enfadonha leitura.
Quase acabou, reaprumando-se em edições com alentadas análises estético-ideológicas sobre Eisenstein, o cinema soviético dos anos 1920 e o cinema clássico americano.
Nas décadas seguintes, mais atenta ao mainstream, firmou-se de novo, mas sem a aura de outros tempos. Perdeu suas mentes mais cintilantes (Serge Daney, por exemplo), mas, com renovadas adesões, logrou sobreviver à concorrência do mercado persa digital e sua miríade de críticos online.
Não, contudo, à retração do mercado editorial e à pindaíba a que os impressos de modo geral foram condenados nos últimos anos. O grupo que controla a marca pode bem contratar uma nova redação e, eventualmente, desterrá-la para a internet. Só aí sim poderemos dizer R.I.P., Cahiers.