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'O Que Te Pertence' narra relação de um professor com um jovem

Livro de Garth Greenwell segue a onda das obras de André Aciman e Tobias Carvalho, romances gays recentes

Por Mateus Baldi
Atualização:

Dizem os (bons) manuais que não se deve julgar um livro pela capa, mas, no caso de O Que Te Pertence, a imagem cinza de um quarto cuja cama está desorganizada como se à espera de alguém que pode nunca voltar, apenas as bordas pintadas de rosa traduzem alguma felicidade – e pode muito bem ser a melhor metáfora para descrever este potente romance de estreia do escritor norte-americano Garth Greenwell, de 41 anos. 

O escritor, professor e crítico americano Garth Greenwell Foto: Todavia

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Desde o ano passado, com o fenômeno Me Chame Pelo Seu Nome, de André Aciman, obras importantes sobre relacionamentos gays vêm sendo produzidas – As Coisas, de Tobias Carvalho, vencedor do prêmio Sesc na categoria contos – e/ou redescobertas – O Quarto de Giovanni, de James Baldwin, que ganhou reedição após anos fora de catálogo. Situado entre Aciman e Baldwin, com algo da afetação do primeiro e a crueldade sentimental do último, O Que Te Pertence não tem pretensões ou ingenuidades.

O que é trabalhado em suas duzentas páginas é o caráter prático de uma relação, com alegrias e dificuldades – até demais – surgindo conforme a narrativa pede. Eleito pelo jornal The New York Times um dos melhores livros de 2016 e finalista de seis prestigiados prêmios literários, trata-se da história de um professor americano que vive na Bulgária e se envolve com o bonito e complicado Mitko. Em três partes de fôlego, a segunda sendo a melhor de todas, o livro se desenvolve partindo de dois eixos básicos – a relação do protagonista com o búlgaro e suas consequências interiores, o que de fato estraçalha o leitor. 

O comportamento destrutivo de Mitko ameaça a paz do professor, que começa a olhar para a cidade com um olhar brutalmente honesto. Suas descrições parecem ganhar profundidade à medida que ele vai sendo perturbado por esta estranha presença, praticamente impossível de ser renegada. Mitko é misterioso, verbaliza pouco e, quando o faz, parece carregado de sombras, ocultando seu passado e só o resgatando em caso de vida ou morte.

Brigão, Mitko foi criado às margens do Mar Negro, em Vana, onde se desenrola uma das passagens mais tensas do livro. Já o professor, nascido no Kentucky tal qual Greenwell, dá aulas em um colégio famoso e não tem muito dinheiro. Seu apartamento de dois quartos, onde recebe visitas de um Mitko cada vez mais paranoico e delirante, foi arranjado pelo próprio colégio.

Vagueando pelas sombras da Bulgária, os dois antagonizam constantemente, e o jogo de presa e cativo suscita boas reflexões contemporâneas: “Como o desejo é indefeso fora de seu pequeno teatro do tesão, como ele se torna ridículo no momento em que não é bem-vindo, mesmo quando dá um jeito de ser acolhido”. 

Pois é também esta a natureza desse relacionamento perverso – alguém que quer, mas não muito, e alguém que quer demais, muitas vezes se alternando. O delírio de Mitko, tão brutal que o consome fisicamente, parece ser sexualmente transmissível: caminhando pelas ruas, o protagonista/narrador precisa encontrar beleza em qualquer coisa, mesmo que sejam os prédios que já nasceram ruínas no velho comunismo do sudeste europeu.

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Embora tenha partes excessivamente longas, até mesmo arrastadas, O Que Te Pertence não foge do tratamento cuidadoso às questões contemporâneas. Público e privado – um homem que se importa com os alunos sem aula e transa em banheiros onde qualquer um pode abrir a porta –, o sistema de saúde pública que parece ser igualmente terrível em qualquer lugar do mundo, pais abusivos e mães incompreensivas. 

Tudo em Garth Greenwell é uma boa desculpa para analisar o que é se relacionar, sendo homo ou heteroafetivo, em tempos de fronteiras borradas. Estourando os flancos de seus personagens com tiros de melancolia, eis um livro cujo rótulo de “grande romance gay dos nossos tempos” é de um reducionismo incômodo: O Que Te Pertence, afinal, é muito mais que isso – e tão cheio de sentidos quanto uma cama vazia, esperando diante da luz. *MATEUS BALDI É ESCRITOR E ROTEIRISTA. FUNDOU A RESENHA DE BOLSO, PLATAFORMA DE CRÍTICAS DE LITERATURA

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