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Economista iraniano que mora em New Jersey quer ser presidente do Irã. Sua plataforma: reformar o país sem pisar na túnica dos aiatolás

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Por Lúcia Guimarães e de O Estado de S. Paulo
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A cena embaraçosa seria cômica se não envolvesse elementos de tragédia internacional, tais como um programa nuclear renegado, um regime altamente combustível e um superpoder cansado. O provável secretário de Defesa do segundo mandato de Barack Obama, o condecorado veterano do Vietnã e ex-senador republicano Chuck Hagel, cometeu o clássico ato falho freudiano, ao ser sabatinado sobre o Irã: "Eu apoio a forte posição de contenção do presidente".

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Um arrepio se fez sentir na Casa Branca. Um assessor lívido passou um bilhete para Hagel, que foi ferido duas vezes lutando no delta do Rio Mekong, mas não haveria de sobreviver à artilharia política de Washington quando o assunto é o Irã. Visivelmente constrangido, ele balbuciou: "Eu me expressei mal. Se disse que apoio a contenção do Irã o que quero dizer é que não temos uma política de contenção".

O que Chuck Hagel quis dizer de fato é que, no jardim de infância do Congresso, compreendeu que não poderia chocar a turma de ouvintes enunciando a política com a qual seu futuro chefe concorda e que deve ser posta em prática pelo novo xerife instalado no Departamento de Estado, John Kerry. O Irã está enriquecendo urânio. A questão é em que grau de enriquecimento pretende parar, mais ou menos próximo do necessário para a construção de uma bomba. O país está economicamente encurralado por sanções, um arrocho que aumentou na quarta-feira passada quando Washington restringiu a capacidade de Teerã de repatriar pelo sistema bancário o pagamento por exportações de petróleo, já em queda livre desde a rodada de sanções de julho. Mas o alto desemprego, a inflação, a queda de sua moeda, o rial, não desaceleram o complexo militar iraniano, seja nas centrífugas que se multiplicam em instalações subterrâneas ou no macaco (ou foram dois?) alistado como astronauta.

Se existiu um Antônio Carlos Jobim persa, ele há de ter cunhado a frase: "O Irã não é para principiantes". Vejamos. Um economista que mora em New Jersey está em plena campanha para ser aceito candidato na eleição presidencial iraniana de junho. "Quero ser o Deng Xiaoping do Irã", declara confiante ao Aliás o professor Hooshang Amirahmadi de sua casa, em Princeton. Reforma sem mudar o sistema e, ainda por cima, de New Jersey?

E mais: um presidente quer suceder a um macaco no espaço. Mas deixemos de lado o histriônico presidente Mahmoud Ahmadinejad, cuja popularidade e cotação política estão abaixo do rial. Ahmadinejad não pode decolar de Teerã sem que algum aliado seu vá para a cadeia. Na semana passada, enquanto Ahmadinejad trocava carícias com o ex-arquiinimigo egípcio Mohamed Morsi, o contemplado com duas noites no xadrez do regime foi o promotor Said Mortazavi. A prisão de Mortazavi é um sinal de decisões já tomadas pelo líder supremo, o aiatolá Ali Khamenei, sobre a próxima eleição presidencial. Mortazavi atravessou o caminho do politico ungido por Khamenei, Ali Larijani, o porta-voz do Parlamento iraniano, já fazendo aquecimento para disputar uma nova e corrupta eleição presidencial nos moldes da que manteve Ahmadinejad no poder em 2009 e resultou numa onda de protestos e repressão sangrenta.

"Acho melhor nos acostumarmos com a ideia de um presidente Larijani", suspira o iraniano-americano Reza Aslan, autor bestseller do aclamado No God but God: The Origins, Evolution, and Future of Islam e, mais recentemente, de How to Win a Cosmic War. Aslan é um acadêmico especializado em religiões, professor de escrita criativa da Universidade da Califórnia e lança em setembro Zealot, um livro sobre Jesus Cristo como personagem político. É também um membro ativo da comunidade de mídia digital voltada para o Oriente Médio, como fundador do site AsianMedia.com. Aslan se confessa levemente otimista com as chances de détente entre Washington e Teerã. Acredita que Obama defende o diálogo e, sem a pressão de uma reeleição, pode arriscar o capital político no segundo mandato.

Diante do aperto das sanções, o líder supremo Khamenei avisou por seu website, ó ironia teocrática, que não faz sentido dialogar com o governo Obama sob pressão, como defendeu publicamente o vice-presidente Biden, e John Kerry pode confirmar até quando espera o elevador na sede do Departamento de Estado, em Foggy Bottom.

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Numa longa conversa em que demonstrou confiança inabalável, como convém a um homem disposto a convencer uma revigorada teocracia de seus préstimos (um projeto similar a propor eleições diretas na Coreia do Norte), Hooshang Amirahmadi, de 65 anos, discorreu sobre o país que deixou na década de 1970 - "antes da Revolução Islâmica de 1977 e não como exilado", esclarece. Ele tem passaporte americano, cidadania iraniana e uma cadeira de planejamento e administração pública na Universidade de Rutgers, onde fundou o Departamento de Estudos do Oriente Médio.

Pergunto se o epíteto "Deng Xiaoping do Irã" não esbarra em certas realidades, como o fato de que o falecido líder do Partido Comunista, além de morar em Pequim e não Princeton, ter sido um veterano membro da burocracia. Ele responde ponto a ponto, explicando por que acha que tem chances de reformar o Irã sem pisar na túnica dos aiatolás. "Eu sou um economista experiente, não pertenço a nenhuma facção ou partido político. Entendo de desenvolvimento econômico e administração pública. Não estou distanciado do Irã, que visito com frequência e onde conheço pessoalmente dois clérigos do conselho de 12 membros que vão aprovar, em maio, os candidatos para a eleição de 14 de junho."

Mas, argumento, com apenas um mês de campanha oficial, mesmo se sua candidatura for aprovada, como se tornar conhecido do predominantemente jovem eleitorado de um país com 75 milhões de habitantes? O energético Amirahmadi retruca que é onipresente na mídia farsi, onde escreve e é constantemente entrevistado quando o tema é o país apelidado de Grande Satã. O economista reconhece que o apelido é sintoma de um impasse que começou em 1977. A Revolução Islâmica se definiu pela oposição ao poder americano. "E os americanos desconfiam de qualquer revolução", diz.

Nas entrevistas que começam a aparecer na mídia americana o aspirante a sucessor de Ahmadinejad martela os três pontos que, "fazem de mim o candidato ideal" para liderar seu país natal. Primeiro, argumenta, o Irã beira um precipício econômico agravado pelas sanções, mas resultante de incompetência e corrupção administrativa. Em segundo lugar, a luta interna entre facções se agravou, segundo ele, a tal ponto que não há a menor coesão na elite política que vive sob a sombra do Conselho Islâmico Guardião. O terceiro ponto é o confronto com os Estados Unidos, responsável pela intransigência na política nuclear e, mais amplamente, pelo isolamento da comunidade ocidental.

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"Os iranianos querem um administrador econômico competente, um pacificador que restaure o lugar do país na comunidade internacional e um presidente capaz de navegar entre facções internas porque não pertence a nenhuma delas", declara nosso ensolarado interlocutor. Como, presidente, ele promete, não vai implementar um programa nuclear visando à bomba. "Nenhum país precisa da bomba atômica", continua. "A guerra do futuro será cibernética. A bomba, depois de 70 nos, não serve mais de dissuasão. Os países vão se ameaçar com a destruição tecnológica."

Pergunto sobre o elefante no Salão Oval, quando Obama discute seus passos na condução de uma aproximação com o Irã. O consenso em Washington é que a última eleição israelense baixou o volume retórico que exasperava Obama ao cobrar promessa incondicional de ação militar dos Estados Unidos. As negociações sobre o programa nuclear iraniano recomeçam no próximo dia 26, no Casaquistão, sob o patrocínio da Grã-Bretanha, Alemanha, França, China, Rússia e Estados Unidos. Ciente de que Israel vê o Irã como a grande ameaça a sua existência, menos na demagogia de Ahmadinejad do que na ameaça militante do Hezbollah, Amirahmadi argumenta que o Hezbollah se inseriu na vida institucional do Líbano e um presidente do Irã que se apresente como conciliador para Israel, ele acredita, terá chances de trazer não só o Hezbollah, como o palestino Hamas, para o mainstream da política.

Amirahmadi concluiu seu Ph.D. de administração pública em Cornell, em 1982, e lembra saudoso de colegas brasileiros, amizades que abriram caminho para uma visita a São Paulo na década de 1980. Elogia o esforço dos governos do Brasil e da Turquia, em 2010, quando se ofereceram como mediadores de um acordo em que o Irã enviaria urânio para ser enriquecido na Turquia. Lamenta que o governo Obama não tenha tirado proveito da mediação dos dois países.

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"Foi uma de várias oportunidades perdidas e os dois países só devem se engajar de novo se não saírem chamuscados", comenta o acadêmico Reza Aslan, que está dando aulas de religião e política do Oriente Médio por um semestre num câmpus a 60 quilômetros de Princeton, na Drew University, mas não conhece Amirahmadi pessoalmente. Ele não acredita que o professor de Rutgers tenha chances de passar pela peneira da teocracia iraniana, menos por sua capacidade que pelo fato de que vive há 40 anos nos Estados Unidos. Mas elogia o simbolismo da campanha para reduzir o radicalismo que isola o Irã. Embora não alimente ilusões de uma eleição limpa, Aslan acha que o provável candidato Ali Larijani, embora, nas suas palavras, seja corrupto e comprometido com o regime, é um pragmático e seria um interlocutor mais engajado com os Estados Unidos. Teme que a continuação do conflito na Síria, aliada estratégica do Irã na região, enfraqueça a disposição iraniana de negociar uma solução para o programa nuclear. Mas lembra, quem quer que seja o presidente do Irã, a partir de junho, que ele continuará sem acesso pleno ao programa nuclear e com poderes limitados de tomar decisões econômicas.

Há sinais de movimento, em Teerã e Washington. Mas não há garantias de mudança. O candidato a candidato Amirahmadi admite que apenas tirou um ano sabático de sua cadeira na Universidade de Rutgers.

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