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O remetente

Ele está fora do jogo político. Mas ressurgiu ?condenado? a escrever 27 cartas aos governadores

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Cláudio Salvador Lembo tem uma maneira peculiar de enxergar as coisas: sua visão do mundo está resguardada pelas maiores sobrancelhas da política brasileira, quiçá de todo o universo sideral. É praticamente um toldo que se espicha para além das têmporas, tornando o seu rosto ao mesmo tempo engraçado e assustador - tipo uma caricatura do Loredano, uma pessoa do Picasso. Estivesse o Cláudio Lembo preocupado com isso, bastaria uma tosa, mas não é o caso. No programa do Amaury Junior, uma apresentadora de TV chegou mesmo a lhe propor esta solução final. Sugeriu uma aposta: se ele ganhasse, ela faria uma doação em dinheiro a uma instituição de caridade. Se perdesse, ele teria de cortar sua guarnição de pêlos. "O que é isso, minha filha???", espantou-se Lembo, franzindo a parte em questão. "Ofereça você o que quiser à sua entidade, mas não a minha sobrancelha. Dela jamais tirei um único fio. E além do quê, não abro mão de minha integridade física." O ex-governador de São Paulo, hoje com 73 anos, é uma peça rara, um frasista vocacionado para as coletâneas de citações, um perfil daqueles que, nas palavras do escritor Humberto Werneck, nem jornalista ruim consegue estragar. Desprovido de papas na língua (um supersincero como o personagem de Luiz Fernando Guimarães), seu problema não é a sobrancelha, mas a boca, pela qual esteve próximo de morrer em algumas oportunidades. Na mais célebre, o então governador apontou o dedo para a "minoria branca perversa" ao comentar os atentados do PCC na capital paulista em maio de 2006, durante o período de nove meses em que, vice de Geraldo Alckmin, assumiu "a dura tarefa de ser um tampão". "Aquilo, dito por um pequeno-burguês branco, um italianinho vindo da Europa, causou surpresa", avalia agora, "mas deve ter calado mais fundo na consciência da pessoas." Em uma outra situação, menos traumática, mas com potencial de arrumar ao ex-governador uma sarna para se coçar, Lembo antecipou a decisão de não colocar à venda 20% das ações da Nossa Caixa, ao contrário do que previa o orçamento daquele ano. Fez isso em uma entrevista desavisada na porta do Palácio às 4h30 da tarde, portanto antes do fechamento do pregão na Bovespa. A Comissão de Valores Mobiliários, agência controladora do mercado, abriu processo administrativo contra ele. No início deste mês, a CVM aceitou uma inusitada proposta de Lembo para dar fim à ação: ele se compromete a escrever uma carta a cada um dos 27 governadores de Estado, alertando para o fato de que, além do risco já calculado de se dar bom dia a cavalo, falar demais também pode derrubar a Bolsa. Lembo começa a postar suas correspondências esta semana. "Aproveito o ensejo para reiterar votos de estima e consideração", despede-se, dando por encerrada sua "missão educativa". Eis uma peça deveras rara: um milionário que não usa o seu dinheiro e realmente não parece ter planos de fazê-lo. Há 60 anos que o Cláudio Lembo mora (e mais recentemente mantém escritório) em um pequeno sobrado, "um cortiço limpinho" localizado na Bela Vista, bairro de classe média de São Paulo. Os cômodos são apertados, seus móveis são todos antigos, seu computador é ultrapassado. Não possui outros imóveis. Embora ainda tenha direito a carro oficial com motorista, só o utiliza de vez em quando. É mais comum vê-lo dirigindo o próprio automóvel - um Ford Ka. Lembo não gasta dinheiro com viagens. Não compra roupas. Possui apenas "quatro ou cinco ternos" e veste-se com eles de segunda a segunda, variando o styling apenas aos domingos, quando tira a gravata. A camisa social é sempre branca. A gravata, preta - uma homenagem ao filho, morto há dez anos. Entre seus familiares, diz-se que Lembo vai à praia de paletó. Intriga: ele não vai à praia porque "areia no pé é uma coisa horrível". Quando assumiu o governo, tinha um patrimônio avaliado em R$ 12,5 milhões, "uma coisa normalzinha de quem trabalhou a vida inteira". O dinheiro fica todo no Banco Itaú, para o qual advogou por 39 anos. Até outro dia, não sublinhava trechos dos livros que lia: o pai o alertara para a possibilidade de precisar vendê-los futuramente. "Sem as marcas", diz, "eles valem muito mais." A mão de vaca é um membro que se desenvolveu no corpo docente de sua geração - vide Fernando Henrique Cardoso, que apesar da fama certamente não atinge a sola dos sapatos econômicos de Cláudio Lembo. Ao contrário do presidente, o governador tem hoje uma atuação política "discretíssima", ainda que permaneça filiado ao Partido Democrata, o DEM. Diz que conseguiu "no fim da vida" tudo com o que sempre sonhou: "Ser apenas um cidadão comum dando aula". Doutor em Direito, é professor convidado da USP. Leciona direito constitucional na Universidade Presbiteriana Mackenzie, da qual já foi reitor. Trabalha ainda na graduação da Faculdade Armando Álvares Penteado, a Faap. Como homem público, faz questão de repetir sempre o julgamento que tem de si próprio: "Um político sem carisma". Lembo tem especial prazer em falar mal dele mesmo. Se a conversa não favorecê-lo no sentido de propiciar "uma forma de autoflagelação", é capaz de interrompê-la do nada para que se registre uma nota negativa a seu respeito. "Anote aí: eu nunca fiz exercícios físicos. Jamais freqüentei uma academia, não corri, não nadei, não fiz ginástica." Depois do Lembo, a segunda pessoa que o Lembo mais gosta de dar uma esculachada é justamente no FHC. "Deste eu guardo uma mágoa", diz, referindo-se aos comentários do ex-presidente sobre sua atuação como governador durante a série de ataques do PCC em 2006. "Você não pode estar em uma festa society promovida por um grande banco em Nova York e dizer, com um copo de uísque na mão, que não teria feito acordo com bandidos", destila Lembo um ódio escocês. "Não sei se FHC já fez algum acordo com bandido. Eu não fiz." (Na quarta-feira passada, o Lembo esteve no velório da d. Ruth. E como um Lula que deixasse de bobagem, fez questão de cumprimentar o ex-presidente.) No universo da política, Cláudio Lembo é um observador arguto, termo este que poderia figurar em um dicionário de lugares-comuns. Tem opiniões sobre tudo e todo o mundo - e para proferi-las saca de seu arsenal de boas frases, estas que soam como música para o ouvido de um jornalista. Vamos a elas: 1. "No Brasil não há oposição. Ela não propõe nada e só se dedica a coisas pequenininhas." 2. "O DEM é tão pequeno, vive um momento tão difícil em busca de identidade, que sinceramente não sei o que será de nós." 3. "Lula é o grande conciliador da massa popular e as burguesias. Terá um importante lugar na história." 4. "Nós italianinhos também somos produtos da servidão branca. Viemos como colonos, para fazer os trabalhos mais duros. Por isso tenho a capacidade de entender o Lula e seu efetivo amargor diante da tragédia humana." 5. "O Judiciário tem avançado além dos seus limites. Quando concede uma liminar impedindo a publicação de uma reportagem, isso é muito grave. A pior das ditaduras é a ditadura da toga." 6. "Um presidente de personalidade mais agressiva terá sérios problemas com o Supremo." 7. "Fico perplexo vendo a polícia carioca subir morro e jamais atuar na Vieira Souto. Só existe traficante no morro? Tá bom, viu...". Às vezes o Lembo parece um quadro do PSTU que se infiltrou entre os demos. Na verdade, quando ele era muito jovem, chegou realmente a flertar com o marxismo. Filho único de uma família de classe média baixa, morava numa das vilas operárias do bairro da Liberdade. Perto da sua casa ficava a sede do jornal Hoje, do Partido Comunista Brasileiro. Lá se ensinava Marx aos jovens que distribuíam a publicação. O Lembo ia assistir às aulas. Ele tinha 13 anos e o pessoal começou a chamá-lo de "tovarich", que vem a ser "camarada" em russo. O Lembo achou ridículo - e começou a virar a casaca. Em 1974, tornou-se secretário de Estado na gestão do governador Paulo Egydio. Na Prefeitura de São Paulo, trabalhou com Jânio Quadros e Paulo Maluf. Foi candidato a vice-presidente na chapa de Aureliano Chaves, nas eleições de 1989. Finalmente, foi governador entre abril e dezembro de 2006. Agora o Lembo está fora do jogo. Dorme e acorda tranqüilo, o cidadão comum dando aula. Não penteia a sobrancelha, "apenas passo a mão de manhã". Não a considera muito bonita. Mas isso não tem para ele a menor importância: "Eu tenho bom gosto. Só me olho no espelho para fazer a barba".

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