O significado de Obama ou a arquitetura da restauração

Os fatos podem forçar políticos cautelosos como o novo presidente dos EUA a agir com audácia

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Por Michael Lind
Atualização:

Qual é o significado de Barack Obama? Naturalmente é impossível avaliar uma presidência que ainda tem que se produzir, não obstante declarações prematuras de que o eleito será um presidente "transformador", a ser comparado com gigantes como Abraham Lincoln, Theodore e Franklin Roosevelt. Mas já não é prematuro analisar o significado da sua eleição. Obama não foi eleito porque o povo americano decidiu dar um exemplo para o mundo de democracia aberta a todas as raças. Foi eleito porque a eleição presidencial de 2008 se tornou um referendo sobre os dois mandatos desastrosos de George W. Bush. E, se a eleição de Obama indica uma transformação ou uma restauração, isso depende de como é encarado o regime do seu predecessor. Se a presidência de Bush for vista como uma aberração, então a eleição de Obama poderia ser uma restauração. Mas, se for entendido que a presidência de Bush foi típica de um padrão mais antigo, então a eleição de Obama pode ser vista como um novo modo de agir, completamente diferente. Em minha opinião, a eleição de Obama foi uma restauração e não uma transformação. A presidência de Bush foi uma aberração, mesmo se comparada à de presidentes republicanos que o precederam: Richard Nixon, Gerald Ford, Ronald Reagan, e o seu pai. Destes, Nixon, Ford e Bush pai foram republicanos moderados, que rechaçaram as ideias da direita radical no sentido de um desmantelamento do estado do bem-estar social ou de um repúdio ao internacionalismo liberal pós-1945, que predominou nos Estados Unidos. Nesse sentido, Ronald Reagan, herói do movimento conservador que teve início com Barry Goldwater em 1964, foi muito mais moderado do que George W. Bush, que sempre quis ser o herdeiro de Reagan e não do seu pai. Obama foi eleito como o anti-Bush. Durante a campanha ele habilmente se comparou a um teste de Rorschach, em que as pessoas viam o que queriam ver. Mas o apoio que ele recebeu de conservadores e liberais, como também de eleitores de centro e de esquerda, foi resultado de um momento passageiro e se deveu mais à impopularidade de Bush do que às qualidades do novo presidente, por mais atrativas que possam ser. Ao assumir o cargo, ele certamente deverá desapontar muitos partidários. Obama tem duas autobiografias autorizadas, mas ainda é como uma esfinge. Parece existir alguma coisa de camaleão, de indeterminado, no "Barry" Obama que retomou o "Barack". O que não é necessariamente um defeito. Existem políticos convictos como Reagan, Margaret Thatcher e Theodore Roosevelt , e há os improvisadores magistrais, como Benjamin Disraeli, Winston Churchill e Franklin Roosevelt. O homem está sujeito a sucessos e fracassos. George W. Bush foi um político com convicções da pior espécie. Perseverou em políticas ruins quando um improvisador, mais flexível, teria revertido tais políticas sem se preocupar muito com coerência. No caso de um estadista, o oportunismo pode ser uma virtude. E o oportunismo de Obama é impressionante. Quando sua longa associação com o reverendo Jeremiah Wright tornou-se um problema, Obama fez um discurso na televisão em que disse que não podia renegar Wright, tanto quanto não podia renegar sua própria avó branca. Garry Wills declarou no The New York Review of Books que o "discurso sobre raça" de Obama, defendendo sua associação com Wright, estava no mesmo nível do segundo discurso de posse de Lincoln, em 1860. Em questão de semanas, para desconforto dos seus bajuladores na imprensa, Obama renegou publicamente o reverendo Wright, afastando-o como um se fosse um obstáculo para sua campanha. Obama vai precisar de todo o maquiavelismo que puder concentrar para guiar os Estados Unidos em meio a desastres iminentes. Apesar de as eleições de 2006 e 2008 terem varrido os republicanos do Congresso e da Casa Branca, elas não ofereceram uma nova maioria democrata mais à esquerda com um mandato para governar. Cerca de um terço do eleitorado se considera conservador, comparado com mais de um quinto que se descreve como liberal ou progressista - e isso não mudou muito numa década. Na falta de conversões em massa ao liberalismo, os democratas precisaram engrossar a ala direita do partido. E esse partido que agora reconquistou a maioria conseguiu isso ficando menos homogêneo e menos liberal. Embora a diversidade política crie tensões, esse é o preço do sucesso, considerando que os partidos majoritários nos Estados Unidos tendem a ser estranhas coalizões temporárias. Obama obteve a indicação do Partido Democrata em parte porque recorreu às duas maiores alas dos democratas pós-Clinton: a esquerda pura e os novos democratas defensores do comércio baseados nos setores da tecnologia da informação, finanças e mídia. Ao reunir os dois grupos, a esquerda pura e os democratas neoliberais de Wall Street, Obama segue o precedente de Bill Clinton, que conseguiu com sucesso sintetizar o liberalismo cultural - com os gays no exército, a ação afirmativa - com o neoliberalismo econômico, exemplificado pelo Nafta (Acordo de Livre Comércio da América do Norte), pela OMC (Organização Mundial do Comércio) e por hinos à globalização. Clinton, assim, afugentou os eleitores culturalmente conservadores e economicamente populistas. E Obama, do mesmo modo que os outros indicados democratas à presidência, Al Gore e John Kerry, também perdeu os votos desses eleitores. Quando da eleição de 2008, não estava nada claro que a ala voltada para questões sociais e a neoliberal do Partido Democrata eram na verdade alas, diferentemente da mesma classe abastada costeira, profissional e financeira, que na terça-feira é contra o salário mínimo, na quarta defende a carta de motorista para seus empregados e jardineiros estrangeiros ilegais e na quinta escarnece dos trabalhadores brancos, taxando-os de matutos. Clinton e Obama preferiram o termo "progressista" a "liberal" e há uma certa lógica nisso porque a base da elite branca abastada se assemelha mais ao eleitorado do movimento progressista do início do século 20 do que à maioria que apoiou o liberalismo do New Deal, entre 1932 e 1968. Os progressistas originais eram principalmente protestantes do nordeste do país, de classe média alta, horrorizados com os excessos do capitalismo industrial no seu início e horrorizados também diante do que muitos achavam ser o primitivismo dos populistas agrários no Sul e Oeste, como os seguidores de William Jennings Bryan. Baseados nas classes profissionais emergentes, os progressistas dos anos 1900 (e os Novos Liberais e os Socialistas Fabianos na Grã-Bretanha) foram atraídos para a Alemanha de Bismarck, que evitou a plutocracia e o populismo, dando poderes a tecnocratas esclarecidos para realizarem as reformas sociais a partir de cima. Se a sociedade americana em 2008 fosse similar àquela de 1932, a derrota dos populistas e um poderoso movimento sindical teriam condenado os progressistas. Mas dois fatores os ajudaram. O primeiro foi a emancipação dos negros e o crescimento da população latina, graças à imigração, que votou em Obama numa proporção de dois para um. Em 1976, 90% da população dos Estados Unidos eram brancos não hispânicos; hoje essa porcentagem caiu para menos de três quartos. O segundo fator foi ainda mais importante. À medida que a parcela branca do eleitorado encolheu, a parcela da população constituída por profissionais universitários expandiu. Hoje mais de um quarto da população tem um diploma de bacharel e aproximadamente um décimo tem um grau profissional e universitário. Obama é a nova face desse establishment emergente. Isso levanta uma pergunta interessante. Se a esquerda representa igualdade, em que sentido o Partido Democrata é uma agremiação de esquerda? No que diz respeito à atual crise econômica o desafio não é só político, mas também intelectual. A boa notícia para os democratas é que eles se tornaram o partido do governo porque os eleitores perceberam que a ideologia do livre mercado do Partido Republicano foi desacreditada pelos eventos. O problema é que o establishment democrata, com um péssimo senso de oportunidade, adotou grande parte daquela ideologia na última geração. Obama administra como um Novo Democrata, tecnocrata e de centro, nos moldes de Jimmy Carter e Bill Clinton, quando o momento desse tipo de neoliberalismo passou. O Partido Democrata está também em má posição no campo da política externa. As poucas ideias que persistem são aquelas dos anos Clinton e muitas, hoje, são irrelevantes. Muitos mandarins da política externa entre os Novos Democratas apoiaram a guerra do Iraque e colaboraram com os neoconservadores para promover um "concerto de democracias", que marginalizaria as Nações Unidas e colocaria no ostracismo a China e Rússia. O argumento não é que Obama e a maioria democrata no Congresso têm que implementar rapidamente programas grandiosos de gastos públicos e previdência social, como alguns da ala esquerda estão pedindo. Antes de se concentrar nas questões difíceis, como o controle dos custos da saúde pública e aprovação de uma assistência médica universal nos Estados Unidos, o presidente Obama, se pretender um segundo mandato, vai precisar passar uma grande parte, ou todo o seu primeiro mandato, trabalhando com as autoridades governamentais, o setor privado e outros países para restaurar o próprio mercado, na base da tentativa e erro, se necessário. O movimento de Obama até agora tem sido um culto da personalidade, e não um movimento verdadeiro com uma agenda sólida. Ele é o líder de um partido dominado por noções de política interna que hoje parecem triviais quando pregam uma implantação gradativa; um partido cuja noção de intervencionismo por meio da força, pelos Estados Unidos, foi prejudicada pelos gastos da guerra do Iraque. Sem uma alternativa de centro-esquerda pronta no campo da política externa e da economia, e apenas uma ala esquerda formada por grupos de interesses em disputa - verdes, feministas, lobbies, pacifistas, ativistas contrários à expansão urbana -, os democratas liderados por Obama precisarão caminhar com cautela. A melhor maneira de justificarem a confiança depositada pelos eleitores americanos será mostrando uma disposição implacável para abandonar as velhas doutrinas da década de 90, a última vez que democratas estiveram no controle da Casa Branca, e para pensar com a coragem característica dos liberais dos anos 50 e dos progressistas do início do século 20. O culto messiânico em torno de Obama candidato foi sempre prejudicado pelas suas propostas políticas modestas. Mas os acontecimentos podem forçar políticos cautelosos a agir com audácia. Ao lado das muitas oportunidades para fracassar surgirão oportunidades ocasionais de grandeza - para Obama e a nação que ele conduz - nos anos turbulentos à frente. Disso pelo menos podemos ter certeza. * Michael Lind é membro da Fundação Nova América em Washington D. C. e autor do livro The American Way Of Strategy (O Estilo Americano de Estratégia). Escreveu esse artigo para o The New York Times

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