O terceiro mandato e outras dúvidas

Apesar das negativas do presidente e da grita da oposição, a incerteza institucional brasileira alimenta especulações

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Por Bruno P. W. Reis
Atualização:

O presidente já negou. Enfaticamente. Várias vezes. A oposição, por via das dúv, já estrilou, restringindo o raio de ação dos interessados e aumentando o custo político da manobra. Mas o espectro da recandidatura de Lula em 2010 permanece à baila, alimentando os sonhos de boa parte de sua base e assombrando os piores pesadelos de seus adversários. Intuitivamente, os jornalistas tampouco deixam o tema sossegar, trazendo a possibilidade de volta em toda oportunidade. Por quê? É curiosa a conjuntura política do Brasil neste ponto de sua história. Por um lado, caminhamos rumo a inéditos 20 anos de considerável estabilidade democrática, com periodicidades eleitorais observadas, posses dos vitoriosos asseguradas, ausência de conspirações ou sublevações militares, mandatos integralmente cumpridos salvo por pronunciamento contrário - em contexto pacífico - das autoridades civis competentes. Mais. Aos trancos e barrancos, lograram-se afinal elogiáveis indicadores em variados aspectos da vida econômica: balanço de pagamentos superavitário, compromissos externos em dia, dívida pública em queda; inflação sob controle, em patamares, digamos, razoáveis; investimentos em alta, e promessa tangível de crescimento sustentado durante anos, sem "milagres"; institucionalização de uma política social universalizada junto a seu público-alvo, eficiente e versátil, à qual podem ser acopladas finalidades diversas, conforme as prioridades eleitas no momento; por fim, até mesmo sinais encorajadores (conquanto modestos) no que toca à desconcentração de renda. Por outro lado, é preciso reconhecer que os fundamentos institucionais desse cenário promissor permanecem frágeis. A Constituição, fonte natural da legitimidade do regime político nos manuais acadêmicos, caminha para o seu 20º aniversário, mas é fortemente contestada desde o nascimento. Praticamente não há dispositivo ou procedimento institucional que não seja objeto de disputa ou contestação no Brasil de hoje - desde a regulação da imprensa até o sistema eleitoral, passando pelas prerrogativas da autoridade monetária e do Ministério Público. Ao longo das últimas décadas, o governo recobrou o controle sobre a economia, mas em larga medida isto se deu à custa de expedientes temporários ou francamente contrários a dispositivos constitucionais - que, em muitos casos, não foram revogados. Faltou-nos ao longo desses anos a dose necessária de consenso político para respaldar a adequação de nosso marco institucional aos requisitos da estabilização alcançada. Assim, ainda hoje a estabilidade econômica apóia-se na penosa renovação periódica de instrumentos como a CPMF e a DRU. No plano da representação política, vivemos uma incapacidade gritante de controlar o financiamento de nossas campanhas eleitorais - e isso tem tido o seu efeito mais visível na transformação do nosso noticiário político em sucedâneo das páginas policiais, com a conseqüente disseminação de um profundo mal-estar da opinião pública em relação à vida política nacional. De fato, na falta de controles sobre abuso do poder econômico em campanhas, tem obviamente mais chances de se eleger aquele que montar o "caixa 2" mais robusto. Esse viés de "seleção adversa" já seria gravíssimo por si só, mas é preciso reconhecer que, em nosso caso, seu efeito é fortemente intensificado no concurso de "top of mind" em que nossas despolitizadas eleições parlamentares com lista aberta se constituem. Não chega a surpreender que, nesse cenário, as elevadas taxas de renovação parlamentar observadas nas últimas eleições tenham dado mais motivo para desânimo que para júbilo. Contudo, no momento em que a reforma eleitoral entrou na pauta de votação em maio último, encontrou a imprensa e a opinião pública inteiramente absortas com os indícios dos crimes fiscais de Renan Calheiros. Infelizmente, preferimos contemplar os sintomas a diagnosticar e combater as causas. Tudo isso ajuda a compor o clima de incerteza institucional que viceja por baixo da cena política, e alimenta especulações, não importa quão pouco críveis elas pareçam à primeira vista. Mesmo que, no fim, nenhuma novidade se passe, a incerteza dificulta e onera a barganha em pontos substantivos da agenda política: é claramente indesejável, por exemplo, que as negociações relativas à CPMF se vejam atravessadas por cenários especulativos quanto a quem pode ou não concorrer em 2010. Vista de hoje, soa plausível a preferência manifestada pelo próprio Lula (de maneira talvez imprudente) por uma candidatura em 2014 - até porque esta opção lhe abre desde logo a possibilidade do exercício não de três, mas de quatro mandatos. Entretanto, a recandidatura em 2010 continuará a ser utilizada estrategicamente tanto pela situação quanto pela oposição, até que o calendário determine o contrário. Pois não faltam os interessados nela, a conferir-lhe credibilidade. E, até pelo precedente da emenda de 1997, ela se inscreve, de fato, no arco das possibilidades políticas. * Bruno P. W. Reis é professor de ciência política da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)

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