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O terror da pureza atlética

A obsessão com o doping generaliza as acusações, produz o ‘eu virtuoso’ e tira o prazer de se curtir o esporte

Por Hans Ulrich Gumbrecht
Atualização:

.Se você se baseia na quantidade e na sensação desagradável (muitas vezes até mesmo penosa) que ela produz, um novo tema vem conquistando, como um tecido canceroso que se expande continuamente, amplas parcelas das editorias de esporte nos jornais, nas rádios e nas TVs. Estou me referindo à cobertura e às discussões intermináveis sobre as possibilidades, as técnicas, e os casos concretos de doping nas competições atléticas que passaram a ocupar o centro da cena, a ponto de muitos esquecerem que, não muito tempo atrás, o mundo dos esportes existia sem tantas suspeitas generalizadas. Independentemente dos méritos individuais e coletivos, independentemente também do fato de poderem ser comprovadas ou não, essas suspeitas onipresentes acabaram com boa parte do prazer que costumávamos experimentar assistindo aos momentos mais entusiasmantes da competição atlética. Se, surpreendentemente, o Tour de France tenha sobrevivido, embora provavelmente seja o evento esportivo mais frequentemente criticado, vai levar décadas de grandes realizações esportivas e sem escândalos até que os fãs do ciclismo voltem a cultivar aquele entusiasmo sincero de antes; mais deploráveis ainda são os casos, como as oito medalhas de ouro de Michael Phelps nas Olimpíadas de Pequim, em que apenas a excelência produz a irresistível suspeita de um jogo pouco honesto – na ausência de motivos empíricos para isso.

 

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Como em qualquer outro movimento de furor ético e terror político (basta lembrar os chamados "Anos do Terror" durante a Revolução Francesa, ou seja, os anos sob Robespierre), nossa obsessão contemporânea pelo doping produziu e agora intensifica três efeitos principais. O primeiro é – quase literalmente – a expansão infinita e a generalização dos conceitos acusadores (nos dias de Robespierre, não havia quase ninguém, com exceção de si próprio, que ele não identificasse como um "inimigo da Revolução"); o segundo efeito é uma tendência à autorrepresentação como objeto de pureza (Robespierre gostava de se definir como "o virtuoso"). O terceiro efeito, como disse acima, é uma perda irreversível do prazer. Vou explicar.

 

O que quer que as futuras regras das associações atléticas nacionais e internacionais possam determinar, não tem sentido incluir uma prática como a lipoaspiração no conceito de doping. Pois, contrariamente a este, a lipoaspiração não melhora o desempenho pela ingestão de substâncias estranhas ao corpo. Insistindo em definições plausíveis e limitadas, acho que pode ser comparada a uma cirurgia ortopédica: se determinada parte do corpo apresenta uma disfunção, o problema pode ser resolvido com uma intervenção mecânica. Quanto à alegação da pureza implícita, a segunda consequência do novo furor, muitos de nós parecem cultivar e adorar, inconscientemente, um ideal de corpo de atleta intocado, inalterado e absolutamente "natural". Mas não será totalmente absurdo negar aos que esperamos que atinjam os mais altos patamares do desempenho físico os tipos de ajuda e suporte "técnico" que todos nós usamos na nossa existência cotidiana? Quem não tomaria uma aspirina (ou duas) se acordasse com uma forte dor de cabeça no dia de um exame importante? Quem não procuraria a ajuda médica do mais alto gabarito, se – como aconteceu com Ronaldo – um processo físico de degeneração o impedisse de praticar sua profissão no nível mais alto possível (o que inclui o mais elevado patamar de renda)?

 

Não, não estou defendendo a completa liberalização de todo tipo de melhoria artificial do desempenho nos esportes. Nem sequer sei se gostaria que a lipoaspiração se tornasse um recurso generalizado entre jogadores atacantes que estão envelhecendo (embora para mim, o episódio de Ronaldo tenha uma aura de desajeitada ingenuidade, como tantos outros momentos de sua vida mais ou menos "privada"). O que estou propondo é que analisemos as próximas questões e as inovações técnicas de doping com conceitos flexíveis e, ao fazer isso, levemos em conta nosso contexto histórico. Falando em história, é preciso dizer que a abstinência radical e a pureza absoluta certamente não eram as condições gerais do atletismo na Grécia antiga ou na antiga Roma. Ao contrário, essas exigências são produtos do estranho furor ético que invadiu os esportes contemporâneos. Por outro lado, se analisarmos as coisas segundo os parâmetros do nosso específico ambiente histórico, acredito que deveria ser permitido aos atletas o mesmo acesso aos recursos farmacológicos e a outros que constituem a prática de um cidadão médio dos nossos dias. Por que os corpos dos atletas deveriam ser mais "puros" que os de seus espectadores? Se levássemos em consideração nosso momento histórico, também nos conscientizaríamos do fato de que, ao que tudo indica, as melhores atuações em um número crescente de eventos atléticos atingiram os limites absolutos do desempenho humano. Basta observar quão lentamente os recordes baixaram na corrida dos 100 metros rasos na última metade do século. Algo semelhante deve ser válido para as etapas das grandes provas ciclísticas realizadas nas montanhas. Consequentemente, o número de atletas que poderiam atingir esses limites absolutos de desempenho está crescendo impiedosamente, e com o seu crescimento, aumenta a tentação de usar substâncias que os ajudariam a superá-los a fim de "destravar" situações competitivas.

 

Mais uma vez, não estou absolutamente menosprezando os efeitos perniciosos de muitas práticas de doping. Entretanto, precisamos urgentemente de um clima de debate menos histérico – pela experiência de que no clima atual a ameaça de processos judiciais e punições sem distinção, nas condições de uma competição cada vez mais intensa, apenas acelera o ritmo da inovação na indústria do doping e empurra cada vez mais atletas para as zonas negras de uma perigosa práxis médica. Em lugar da condescendência e das acusações inflexíveis, devemos a eles um enfoque mais diferenciado dos problemas bastante complexos de seus mundos profissionais; e sugiro que devemos a nós mesmos uma atitude para com os esportes em que o prazer mais uma vez vença uma temível moralidade. Se fosse verdade que todas as formas exteriores para melhorar o corpo humano são problemáticas, as corridas de cavalos e as corridas de bigas da Antiguidade não teriam figurado entre os eventos atléticos mais tradicionais.

 

*Professor de literatura na Universidade de Stanford e autor de Elogio da Beleza Atlética (Cia. das Letras)

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