O teto de vidro blindado

O machismo contemporâneo, hoje bem mais sutil, transforma poderosas como Hillary em vítimas do sucesso

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Por Lúcia Guimarães
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Ao longo da temporada das primárias eleitorais americanas, fui registrando informalmente epítetos sapecados na candidata Hillary Clinton. "Ela é perversa", disse uma musicista democrata liberal. "Que mulher esquisitona", rotulou o jovem de 26 anos, com curso superior, numa referência clara à aparência da senadora. "Passe a ferro minhas camisas!", gritou o eleitor num comício. "É claro que a narrativa de Hillary é sobre sexo", decretou Michael Wolf, o crítico de mídia na revista Vanity Fair, este mês. Sejam bem-vindos ao pós-feminismo. "Pós-feminismo uma ova", escreveu Leslie Bennetts, autora de The Feminine Mistake (O Erro Feminino), cujo título alude ao manifesto feminista de Betty Friedan, The Feminine Mystique. "Hoje em dia acreditamos em igualdade de tratamento para todos, menos para as mulheres", afirmou, num artigo no orgulhosamente chauvinista New York Post. Ao saber que estou tentando entender por que os americanos andam colecionando carcaças de mulheres de meia-idade que morrem na praia, Leslie Bennetts me telefona de volta em poucos minutos. Em The Feminine Mistake, ela lamentou o fato de que tantas mulheres, durante o período recente de afluência, desistiram da carreira, convencidas de que não é possível ser boa profissional e boa mãe ao mesmo tempo. Katie Couric, a primeira mulher a assumir o posto de âncora-solo de um telejornal noturno, na CBS, está para perder o emprego, depois de ter sido contratada por executivos homens por um salário anual de US$ 15 milhões - os mesmos executivos que montaram a estratégia de suavizar (leia-se emburrecer) o telejornal, que levou à queda de audiência e aos dedos acusatórios apontados para a pioneira de saias. Em novembro passado, Zoe Cruz aprumou-se ao ser convocada para o escritório de seu chefe, o presidente do Morgan Stanley. Enquanto caminhava ao encontro de John Mack, Cruz ensaiava sua reação ao que considerava ser o desfecho inevitável: ela se tornaria a primeira mulher presidente de uma grande corporação de Wall Street. Foi demitida sumariamente, sacrificada por uma frente masculina que a considerou emocional e abrasiva demais, e que ainda encostou Mack na parede. Cruz, além de ter tido um desempenho excepcional no Morgan Stanley, tentou prevenir a tempestade dos empréstimos sub-prime que se anunciava, mas foi sabotada por subordinados - homens. A ascensão e queda de Zoe Cruz é narrada num artigo recente da revista New York. Peço a Leslie Bennetts para comentar a coluna de seu colega Michael Wolff na Vanity Fair: "A história de Hillary é, e como não podia deixar de ser?, em grande parte uma história sexual. Esta não é uma visão sexista e, sim, sexualista. O que está acontecendo lá? Qual é a vibração? (?) Qual é a história da Hillary com sexo? O consenso é que ela simplesmente não transa (pelo menos não com o marido)". Bennetts mal me deixa terminar a citação da coluna: "Quem diabos ele (Wolff) pensa que é para afirmar isto? Como ele sabe o que se passa? É pura projeção. Os homens, quando não são desejados pelas mulheres em casa, decretam que todas as mulheres de meia-idade são pós-sexuais." Ela não defende Hillary politicamente, mas ataca o duplo padrão de tratamento recebido pela senadora. Desfila o rosário de humilhações públicas. Na irreverente série animada South Park, terroristas inserem uma bomba na vagina de Hillary. O popularíssimo e obeso apresentador de rádio e hipócrita de plantão Rush Limbaugh explicou que Hillary não poderia ser presidente: o público americano não ia tolerar a visão terrível de uma mulher envelhecendo na Casa Branca. Pergunto à minha interlocutora como é possível que o berço do feminismo tenha regredido a ponto de um comentarista nacional se sentir à vontade para regurgitar imbecilidades como essa. Ela suspira. "Houve um tempo em que não era aceitável referir-se às mulheres dessa forma, defini-las pela aparência física. Havia uma sensibilidade diferente. Esse tempo passou. Veja a questão da idade. Ninguém se refere a John McCain dessa forma." McCain faz 72 anos em agosto e seria o mais velho presidente a tomar posse em Washington. Na década de 80, Leslie Bennetts foi a primeira mulher deslocada pelo New York Times para a cobertura política. Hoje ela se lembra dos lapsos assustadores de Ronald Reagan e vê a diferença entre a preocupação legítima com a lucidez de um potencial chefe de Estado e o antagonismo dirigido à sessentona Hillary. Embora muitos apontem a atual campanha como um momento histórico nas questões de raça e sexo, a colunista não tem ilusões. "O fato é que poucos teriam coragem de afirmar que ?não votaria num candidato por ser negro?." O politicamente correto blindou, para o bem e para o mal, vários grupos. "Mas é possível falar das mulheres em posições de poder com termos ofensivos. O mesmo sujeito que grita para Hillary ?passe as minhas camisas!? não vai gritar para Obama ?engraxe meus sapatos!?" Houve uma confluência de fatores para permitir o retrocesso. Radicalismo religioso, conservadorismo político e a afluência econômica que fez muitas americanas desistirem do mercado de trabalho. Leslie Bennetts prevê que isso tudo vai passar: "Lembre-se, as feministas da década de 50 não imaginavam quanto a onda de divórcios dos anos 70 iria jogá-las em situações de penúria". Em seguida espuma de raiva ao citar a diretora de cinema Nora Ephron, aquele ícone feminista que escreveu um livro denunciando a própria anatomia (Meu Pescoço É um Horror). Quando Katie Couric ancorou a cobertura da noite da eleição de novembro de 2006, Ephron publicou no Huffington Post a seguinte "análise": "Não quero ser sexista em relação a Katie. Mas é impossível para mim fazer qualquer tipo de avaliação sobre ela. Porque não consigo acreditar como é ruim a sua maquiagem. Esta noite ela usou muito lápis no olho e rouge. É muita distração, não é minha culpa prestar atenção nisso. Dá um jeito, Katie!" Como bem lembra Leslie Bennetts em nossa prosa ao telefone, não há registro de nenhuma resenha sobre o bronzeado artificial cenoura exibido habitualmente pelo octogenário Mike Wallace, no veterano 60 Minutes. O tablóide New York Post da última quinta-feira estampava a manchete "Over The Hill", a expressão derrogatória para declínio provocado pela idade. É provável que Hillary Clinton desça do Olimpo que reservou para si mesma com arrogância e calculismo. Mas sua derrota contém múltiplas derrotas. E algumas voltarão para assombrar suas inimigas. *A jornalista Lúcia Guimarães atua como correspondente em Nova York desde 1985. Dirigiu documentários para o GNT e é produtora e participante do programa Manhattan Conection, do mesmo canal

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